terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Da porta para fora

  Desviou a pisada da tábua que range que fica depois da mesa e antes de chegar ao grande armário do casebre. A estrutura de madeira e o calor vindo das duas pequenas janelas, pelas quais mal podia entrar a maltratante luz árida do sol, transformavam o casebre de um cômodo em um forno sujeito ao clima árido semi-desértico do lado de fora.
  O cachorro pulou da cama até a tábua anteriormente evitada, que fraquejou, e ao ruído se misturou o latido enérgico que sabia que quando ela abria o armário, era sinal de que estava na hora de comer.
  Ignorou o barulho irritante da tábua e analisou o conteúdo do armário. Dá pra sobreviver pelos dois meses até que a mulher volte, pensou, e a ideia de que em dois meses teria que abrir a porta novamente para a mulher do estoque a deixou com uma leve tontura apavorada.
  Se apoiou em uma cadeira para que as pernas não cedessem, mas só conseguiu se acalmar no momento em que o cachorro choramingou e a cutucou com o focinho. É claro, amigo, você quer a sua comida, não? Abriu uma lata e a deixou ao lado do canino, que a limpou abanando o rabo. Bom garoto.
  Se serviu de sua porção humana, comeu e foi se deitar. O evento de dali a dois meses atormentou toda a parte lunar do dia, e o sono se deixou substituir por um par de bolsas de inchaço sob os olhos e muitos pares de reviradas na cama.
  O estoque diminuía com regularidade precisa, e a comida que às vezes sobrava já era suficiente para mais dois dias ao fim dos calculados dois meses.
  Foi quando faltava cerca de dez dias para o momento de abrir a porta que elas chegaram. Lúcia abriu o armário no momento da refeição, como o fazia três vezes por dia. O cachorro pulou da cama até a tábua que rangia, e foi só quando ouviu o uivo e o patejar desesperado do amigo que ela percebeu que dessa vez a tábua havia cedido. Largou a comida em qualquer lugar e puxou o amigo com a rapidez que pôde. O cachorro correu para debaixo da cama sem tocar na comida,  e não se atreveu a sair pelo que pareceu muito tempo, enquanto ela ficou a analisar de cima o vão de um metro entre o piso do casebre e o solo.
  A falta de luz no subsolo a tranquilizou, pois significava que não poderia haver comunicação com o mundo exterior. Começou a examinar a tábua partida para imaginar algum possível remendo. Um fedor nauseante de mijo e poeira vinha de baixo. Observava a ranhura na madeira quando, de súbito,  algo também vindo de baixo tapou sua visão.
  Seu rosto sentiu o arranhar de pequenas patas e o golpear aveludado e irregular, como se nele houvessem ranhuras, de uma centena de asas. Um líquido quente lhe conseguiu penetrar os olhos antes de que terminasse de vociferar o grito e empurrar a criatura para longe do rosto.
  Limpou o que pôde do líquido e abriu os olhos, que ardiam, e dos quais escorreu uma espuma opaca. Ao olhar para cima, o teto do casebre estava repleto de mariposas marrons, muitas delas mimetizando nas asas pares de olhos de animais.
  Olhou para as janelas. Nunca havia sequer mexido nas pequenas frestas por onde entrava o ar que impedia que ela e o cachorro morressem sufocados, e altas o suficiente para que ninguém da porta para fora pudesse alcançar. Para que as mariposas fossem embora, teria que abrir, devido ao tamanho padrão delas, uma fresta de no mínimo vinte centímetros e deixá-la aberta até que as aladas tivessem a boa vontade de deixar o recinto.
  As repugnantes mariposas permaneciam no teto, vez ou outra movendo suas asas e fazendo parecer que os olhos se moviam. Olhou para as janelas. Olhou para a porta. Tateou até a maçaneta e a chave para se certificar de que estava bem trancada. Estava. Se não fosse pelas asquerosas mariposas, teria sentido alívio ao checar a tranca. Nada, nem mesmo as mariposas, poderia ser tão assustador quanto o que havia da porta para fora. Decidiu não aumentar as frestas da janela.
  Incomodada ao extremo com as novas presenças, voltou ao armário, pegou sua comida, engoliu rápido e foi se deitar. Seus olhos ainda ardiam, mas Lúcia os manteve abertos, fixos às criaturas do teto, pelo tempo que pôde. Então, uma sensação desconfortável tomou conta de seu organismo. O calor pareceu se acentuar e o ar fétido era, a cada segundo, menos respirável, e a língua pareceu inchar. Uma dor na barriga a levou à conclusão de que a comida deveria estar estragada, e por isso lhe fazia mal. Em determinado momento, a dor na barriga se deixou aliviar num tipo de diarreia espessa que se espalhou plela cama. Durante uma oscilação de tempo, tudo o que viu foi o bater de algumas asas, piscares de olhos e formas estranhas.
   Lúcia acreditou ter ouvido alguns choramingos, e uivos, e latidos que cada hora pareciam mais fracos. Não teve forças para se levantar, mas sentiu as lambidas do cachorro que parecia se alimentar da diarreia espalhada pela cama. E então, acreditou ter ouvido aquilo que mais temia: as batidas na porta.
  NÃO ESTÁ NA DATA COMBINADA, AINDA FALTA UMA SEMANA. NINGUÉM VAI ENTRAR.
   Lúcia passou os próximos oito dias delirando com asas e olhos, e acordou de súbito enquanto bebia um copo de água.
   O fedor da casa dava ânsias. Estava magra, e a comida havia acabado. As mariposas haviam sumido do teto. Procurou desesperadamente, com medo de ter enlouquecido, por todas as paredes, mas elas não estavam mais lá.
   Foi quando olhou para baixo da cama que as viu se alimentando do raquítico cadáver quase em ossos do cachorro e de seus dejetos. A arcada dentária, visível sob a pele carcomida pelas mariposas, ainda estava suja de merda.
   Passou um dia a vomitar pelo cheiro, sentir fome e medo de abrir a janela para se desfazer da ossada do cachorro, até que chegou à conclusão de que teria que maldizer o atraso da senhora dos mantimentos e se alimentar até que ela chegasse.
   Então agarrou a primeira mariposa. O inseto quase a sufocou ao tentar bater as asas e cutucou asquerosamente sua língua com as patas. A textura aveludada e amarga parecia golpear o céu dá boca. Mastigou aquele bolo de patinhas e olhinhos pelos minutos que precisou para criar coragem de engolir junto com a bile que seu aparelho digestivo tentava expulsar para, em vão, impedir que ingerisse a repugnância.
  A mulher que trazia os mantimentos já havia deixado o lugar considerando interná-la em alguma clínica para gente com o mesmo tipo de problema. Mas, depois de a equipe conseguir arrombar a porta, tudo o que encontraram além dos ossos do cachorro, foram as mariposas e um cadáver, do qual se alimentavam, malcheiroso, com a carne roída e os olhos vermelhos e cheios de uma espuma opaca que levaram da porta para fora.