segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A mãe e o mar

   A barra do longo vestido de canga azul quase se arrastava pela areia junto com os pés. Lúcia encarou o vasto mar escuro. Nem a maresia gelada que empurrava a água em suas violentas ondas até a praia, nem mesmo o céu cinza nublado, nem a força com que as ondas batiam nas pedras - e nos restos enferrujados de um trapiche em ruínas - cedeu sequer um pouco de sua força ou sua imposição ao mísero olhar desafiador de um mero mortal humano.
   Como se a moça o tivesse provocado, e como se tivesse aceitado a provocação, o mar trouxe pra perto algumas de suas criaturas que beliscam, suas raízes vermelhas e alguma tábua de algum naufrágio qualquer de outrora. Dizem que o mar é azul porque reflete a cor do céu, e que o céu é azul porque esta é a cor da imensidão, mas em frente à ponta do nariz de Lúcia se esparramava pela praia um mar negro e revoltado, chicoteando as pedras e invadindo a areia, umedecendo o ar e o chão e refletindo o céu cinza escuro que ameaçava chover e trovejar e tornava a cada segundo mais perigoso desafiar as forças da natureza.
   Nem mesmo os pescadores faziam vista. Nem mesmo os cães arriscavam explorar a restinga, e junto ao mar se podia ver apenas Lúcia e todas as criaturas e coisas que pertencem ao mar.
   Lúcia tinha raiva e medo do mar. Sua alma de velho o havia visto tomar os baldinhos e as enormes fortalezas de areia que construía enquanto cantarolava, os cavaleiros e peixes-espadachim que fazia surgir na praia vazia, as sandálias, a saudade e até mesmo a paisagem. Tinha um rancor de velho, e no vazio escuro das águas negras se acreditava como um velho e desafiava o mar infrutífero.
   O brilho estonteante que viu no mar poderia ser da lua que insistia em minguar por trás das nuvens. Ou então apenas mais um peixe. Tentando compreender a figura de longe, vasculhando por entre as ondas sonoras do mar, Lúcia detectou uma voz oceânica que entoava uma antiga melodia que a garota já havia cantado à beira da praia antes. E com a ousada curiosidade dos seus tenros oito anos de idade, levantou a barra da longa bata azul que era de sua mãe e encostou o pézinho no mar. Tinha a proteção do golfinho de henna estampado ao braço, da tornozeleira de miçangas e conchas e do tererê azul claro no cabelo, e perdeu o medo da água ao entender que se parecia muito mais com o mar do que com um velho.
   Foi a dois passos da linha de arrebentação que parou para imaginar se o brilho poderia ter sido de algum espadachim retornando, ou talvez uma sereia. Já a mãe, que a observava brincar, não teve tempo de entender que para a garota, o lampejo púrpura dos céus que castigou o mar e todas as criaturas em volta parecia algum tipo encantado de magia oceânica. E junto à umidade do mar e das lágrimas, tudo o que a mãe ainda podia ver eram todas as criaturas e coisas que pertencem ao mar.