sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Parte dois, ou apenas "A mulher que procrastinação"

   O quarto era todo organizado para que qualquer etapa da vida fosse shortcuteada o mais rápido possível. Os livros na estante eram organizados de acordo com os tipos de necessidades, tinha tudo à mão. Sou autossuficiente, pensava. Sentia, como o estômago muitas vezes sentira o maltrato e como o corpo sentia falta de alguma substância vez ou outra, e, também, como sentia cada dia se findando como um a menos para viver, que era capaz do que quisesse.
   Os projetos de Lúcia se estiravam pelas luxuriosas listas de livros apenas abertos, e pelos ingredientes mais gourmet possíveis que encaravam o miojo entediados, e pelos charutos que vez ou outra aguentava fumar mais do que até a metade, e pelas manhãs não vistas ou não completas ao meio dia. Tudo era muito estático, e nem tudo tão elétrico.
   De forma alguma se sentia imatura. Adiar a vida, como pulava os prefácios dos livros e ignorava alguns ingredientes e guardava charutos cortados e esperava sempre as soluções do amanhã, era natural. E, a longo prazo, surtia o efeito de não gerar a mínima preocupação com o presente. Se morresse ali, esperando acontecer seu grandioso propósito na vida, tudo bem.
   Então vieram os lapsos. Quem notou foi a irmã, que conseguiu insistir em parar de adiar aquele almoço pra matar a saudade. Se fosse a cargo de Lúcia, seria amanhã. Escolheu aquele restaurante de comida japonesa barata da João Negrão, quase na esquina com a Marechal Deodoro. Aquele perto do prédio histórico da universidade federal. Passaram com o dia os hábitos preguiçosos, e quando a noite trouxe a sobriedade, alguma amiga da irmã perguntou o que haviam almoçado e Lúcia respondeu miojo.
   Tudo tinha seu início, mas o fim se dissipava em lapsos que poderiam ser de memória, apesar de parecer com algum limbo entre uma manhã e outra que roía inesperadamente o tempo. E talvez a partir daí a existência se tornou incomum, e a não inércia, paranormal. Como os livros tinham mais ordem do que curiosidade, e a comida, mais automação que criatividade, e o fumo, mais vício que prazer, e a vida, mais existência do que ação, tudo era bem delimitado, e as variantes eram pura blasfêmia.
   Alguma coisa ou outra aparecia em lugares da casa diferentes dos costumeiros, mas a obra do sobrenatural tinha outros atalhos para ser amenizada. E para cada vela que acendia em oferenda, projetava-se sobre a parede uma nova sombra a andarilhar e espalhar golpes cruéis aos seus olhos pela casa. Até mesmo o espelho foi tapado com um lençol velho para que as formas indignas de vida da casa parassem de se refletir sorridentes. Os deuses, e essa é a opinião da autora, deveriam misericordiar-se da alma penada que trazia tanta confusão e impedia que qualquer início se terminasse antes da paz mental.
   O fervor, nunca imaturo, de tentar manter os vícios e o cérebro condicionado, criava a ilusão do destino, e quanto mais a sensação grega de fardo humano pesava sobre a vida inerte, mais pesavam as lágrimas incompreendidas. Como sua mente tecia o enxoval de planos, os vícios desfaziam a concretude de cada meta, uma a uma.
   Mas não era louca. Bem sabia contar até onze, só não sabia a diferença entre o dia em que aprendeu a contar e a data adiada de hoje. E por conseguir passar do dez tinha a certeza de que seus planos inertes seriam todos grandiosos se não fosse pela assombração na casa, nem por aquela garotinha - talvez sua neta? - que não sabia contar mais do que os dedos, mas conseguia enganar a avó com uma moeda escondida atrás da orelha.