domingo, 20 de fevereiro de 2022

Poema para despertar as abelhas

 Porque as vi zanzando

Aquele dia,

Por sobre a floreira, profetizando

Minha maldição derradeira,

Como minhas centelhas,

As abelhas diziam, ornando a flora

Tudo o que sentirei

Para além de agora.


Agouros outrora,

Voavam desparelhas

Por flores vermelhas,

Marrons depois de passada minha hora

Quando me acometeu a insensatez

De acreditar nas macias

Zumbidas profecias

Pela primeira vez.


Guardarei para sempre a imagem

Da abelha solitária, ao voar

E pousar no meu copo

Numa mesa de bar:


Ao romper o medo

Daquele que me acompanhava,

Ofereci o dedo

E quando ela pousou, indefesa,

Arauto de minha sorte,

Cantei sua beleza

E previ sua morte.


Porque o universo a trouxe ao meu dedo,

Cobriu-me como pólen

O desejo zanzante,

O lampejo febril

Pelos toques profanos

Que ecoa por anos após aquele abril.


As abelhas em meu estômago,

Por inocente que fosse devorá-las nos tempos idos,

Vez ou outra me conectam a ontem

Pois ainda rompem os meus tecidos.


Enfeiticei minha vida de abelhas

E por isso me assombra o que ainda pode vir,

Pois o encanto dos versos

Que ainda canto

É que as coloca para dormir.


Porque as vi zanzando

Aquele dia,

E já não mais cantavam minha elegia,

Tú, que cruzou minha trajetória,

E a quem narro

Minha história,

Ainda leigo de minha maldição,

Me oferecestes feito enxame

A possibilidade de que talvez ainda ame

Ao tocar minha mão.


Desperto agora as abelhas,

Com o devido medo ou respeito,

Porque abril ainda era cedo

Pra ferroar meu peito.


Porque tens traços suaves

Dos lábios à sobrancelha,

Tenho um cuidado, carinho esse

Feito o dedo a uma abelha oferecesse

Pois és hoje beleza,

Amanhã não sei se dor.


Temo por meu estômago,

Enquanto procuro a efeito do peito torpo

Teu calor febril,

Teu perfume que já se esvaiu

De meu corpo.

Temo mas não mais prevejo

Arriscar um palpite

Que não teu beijo.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Sábata

   A dor era insuportável. Sobretudo, a física. Sábata comparava, em sua imaginação, a situação em que uma variedade de lâminas de navalha se alojava em pontos diversos de seu corpo: Deslizavam e cortavam fácilmente os tecidos que tocavam, ora como consequência de um movimento, ora como castigo da gravidade.

   Não bastasse a dor física, a lembrança de seu prazer mais vicioso atormentava sua psiquê. Sabia que não poderia repetí-lo novamente, não tão cedo. Mas, a cena que ocorrera há pouco mais de um mês ainda impregnava sua fantasia, visto que era uma visão mais deleitosa que a das paredes que não podia deixar para trás. E o banquete... Foi, de longe, o melhor de sua vida. Em sua mente, ainda se lambuzava das coxas de carne macia e suculenta. Devorava a refeição de forma ansiosa e compulsiva, como se tomasse de volta o sustento para um corpo que estivesse, e certamente estava, desgastado.

   Também sentia culpa, uma culpa disforme perante o olhar do bom senso ao compreender a motivação desta. O tempo não passou, fluiu, no último ano. E Sábata certamente não o sentiu, não deu o devido valor. Agora, o valorizava, porque a dor infernal que impregnava seu corpo era um emaranhado de gritos que ela não tinha pregas para dar som, atormentando a finada paz que precedia esse momento, nos muitos - que agora eram poucos - meses em que a dor não a atormentava.

   Vez ou outra tentava pensar em outras maneiras de contornar a dor, mas nenhuma soava tão coerente. Ao menos, não enquanto fosse a gula a tentação mais sonora. Pensou em autocirurgia. Em talvez remover, por conta própria, suas navalhas imaginárias, para que nunca mais o corpo a castigasse de tal maneira. Também era a morte uma utopia sedutora. Todas as opções convencionais não lhe surtiam efeito, e as imaginadas eram impossíveis devido a seu estado atual.

  Talvez pudesse - devesse - solucionar a dor da mesma maneira de antes. Afinal, toda a trajetória era repleta de prazeres. Os da carne, o fim temporário do sofrimento, a carne. E tomou uma decisão.

   Sábata aproximou-se da porta, e por onde se permitia olhar para dentro de onde estava, exibiu-se.

- Moço!

- Cai fora, doida! - Respondeu o guarda, com desdém.