segunda-feira, 20 de março de 2017

Disfunção

Há um sentido por trás da poesia e das paredes,
O objetivo uno, propósito de todas as coisas
E todos os saberes,
Na incoerência contínua
Da coexistência,
Um sentido aguçado que sabe a pimenta
- E o traço de seu sabor de meio mundo.

Impalpável,
Como o sebo que ocupa os poros, preenchendo;
Maleável,
Como o ar que preenche os pulmões nossos
E dá forma ao movimento;
Inquebrável,
Como são os tijolos
Conectados pelo cimento;
Há um sentido
Que cheguei a pensar que nunca mais sentiria,
Impalpável
Como a textura do bolo de fubá
Cuja receita morreu com a vó.

Coexiste o sentido
Como se sabe que cada coisa em cada retrato ou paisagem em movimento,
Como imagem ou substância,
É parte, por algum motivo,
De algum retrato ou paisagem em movimento;
Subsiste-se,
Química ou biologicamente, se constitui;
Como parte integrante de tudo,
Existe, e o todo flui.

Se me deixo procurar o sentido,
Eu o perco ou esqueço
Como não entendo do abacaxi meu rancor,
Nem da pimenta, meu apreço.
Tudo se desintegra perante minha tez.

O propósito é um propósito que transcende o tempo,
Mais rápido e mais devagar se movimenta
Como o pensamento que constitui
A minha placenta.
A dúvida de que tudo é real dura coisa de um minuto.
- Até que algum sentido me distraia
E eu já não pense nisso -
Mas a dúvida está ao canto,
Marcando presença no tempo omisso
Ao próprio tempo.

(A verdade de ontem é falsa,
Porque eu não lembro em detalhes do bolo que a vó fazia,
E ele não existe mais)

Impalpável,
Como o vazio preenchendo todas as coisas
E estas,
Química e biologicamente ainda coexistindo
E ainda palpáveis;
O sentido existe.

Talvez o sentido de tudo fosse o desejo,
Mas sinto
- A química me faz complacente -
Ao entender que às vezes tem textura de bolo,
E outras, tem nome de gente.

Achei que tivesse perdido
A poesia, as paredes,
O sentido
Até que o vazio primitivo
Complementou a frase sem resposta:
O verbo escrever é intransitivo.

O sentido de todas as coisas,
Sinestésico, estético,
Semercenário em minha habitagem
Está entranhado à antiacepção
De que a poesia é a maior disfunção
Da minha linguagem.



segunda-feira, 13 de março de 2017

Morrereis
Como pui a seda de vossa pompa
E derrete o gesso de vossas faces
E definha vosso império, traço a traço
E não se pode mais esticar as rugas
De vosso cansaço,
E não sabeis
Que rogais vossa praga,
Que salgais em vossa carcaça a chaga
E enxergardes reis
Nas translúcidas portas que dão para fora.

Adentro já se ouve.
Não me resta sequer irmandade.
Aos meus olhos, sois indivíduos,
Como peças de um quebra cabeça,
Um a um a nunca mais que isso,
Um a um todos reis,
Morrereis
Em vossos gritos que adentro se ouve
E afora se ignora,
Pois da vossa sede, o memento
Se marca nas rochas
Do esquecimento.

Morrereis
Como morre a caridade alheia,
Como leva o vento
Um castelo de areia.