segunda-feira, 9 de março de 2020

O homem que rasgava a luz da lua ao meio

   A enorme lua cheia amarelada no ainda diurno céu roxo não apenas se destacava de todo o movimento e beleza urbano transitando pelo campo de visão que era permitido pela janela de Francisco. Ela parecia martelar a vista, com sua robusta forma que se parecia impor à paisagem serena, oprimindo a sensação de que a tarde era agradável até aquele momento e dando aos transeuntes a sensação de que a noite ameaçava os afazeres ainda não cumpridos e que as ruas, lojas e luzes se fechariam em breve, deixando qualquer tarefa que fosse por cumprir e qualquer pessoa que ainda vagasse, sozinha. A enorme lua cheia amarelada no recente céu noturno havia paralisado Francisco em frente à janela.
   Havia uma mágoa profunda acumulada em seu coração, que vez ou outra atordoava os sentidos de Francisco sem que ele soubesse quando exatamente havia surgido, e que se pintava das cores do dia para não existir senão num pequeno canto recluso de seu coração e que se mascarava sob suas feições gentis, e a lua amarela sugava essa pestilência de seu coração para transformá-la na luz doentia que fazia Francisco refletir se, graças à lua, as pessoas que protegia de si eram capazes de enxergar no céu o seu desamparo.
   Como um espelho paralelo à mágoa, projetou-se refletido um medo de que o mundo enxergasse na figura de Francisco o monstruoso emaranhado de mágoa que seu coração bombeava a toda a extensão de suas veias. No ardente amarelo da lua, Francisco enxergou todas as coisas que escondia e das quais se envergonhava e todos seus atos falhos, e o medo que agora também era bombeado pelas veias fez seu pensamento se deixar tomar por uma raiva da lua cheia.
   Francisco fechou a janela com tanta força que seu pulso baqueou. Arrastou as cortinas pelos trilhos e atirou-se ao sofá, mas por baixo das frestas da cortina ainda podia ver a luz amarelada entranhar-se a sala, manchando o parapeito, o sofá e tentando grudar na sua pele.
   Mesmo após fechar os olhos, Francisco enxergava a figura sarcástica da lua invadindo seu imaginário, provocando-o a assumir todos os atos dos quais não se orgulhava. Francisco sentiu que a lua impiedosa não estava disposta a parar de castigar sua mente, e quase que num delírio decidiu correr até a lua para rasgá-la ao meio.
   Ao decidir levantar-se do sofá, seu pulso - que ainda doía - deu forma ao início da forma tátil mais bestial de seu desespero, e enquanto uma das unhas da mão era tocada pela luz não interrompida da lua pegava impulso para erguer o corpo, sua forma se alongou e penetrou a espuma do sofá, deixando uma cicatriz diferente dos arranhões do gato.
   Abriu a porta com o resto de humanidade que habitava seus membros, e após sair de casa todas as partes de seu corpo que ardiam feito doença com o toque amarelado da luz revelavam cicatrizes profundas de sua alma, e de cada cicatriz brotava um pedaço a mais de bestialidade na silhueta transfigurada de Francisco.
   Corria atrás da lua como se não soubesse que jamais poderia voar para alcançá-la. As mãos empurravam o chão para trás, dando impulso para que atingisse uma maior velocidade, mas forçavam sua musculatura diferente a fraquejar a cada galope.
   Foi apenas quando todos os seus músculos doíam que, perto do fim da cidade e da estrada que levava à zona rural, a lua olhou de volta para Francisco, que atirou-se para cima, tentando voar, caiu de volta contra o chão e aceitou que não haveria mais como se levantar.
   Num último esforço, Francisco estendeu as garras que partiriam a lua ao meio, mas quando a luz empregnou-se na pelagem da mão já não havia dor a ser ressentida. Olhou para seu corpo iluminado de amarelo e não parecia tão ruim assim. A luz da lua zelou até o fim da noite pelo frágil corpo atirado à grama e amparou as lágrimas do homem que não sabia mais por quê havia saído de casa, e o esquecimento transformou essa cena numa mágoa sutil, disfarçada pelas feições gentis e sorridentes do cotidiano de Francisco, uma mágoa acumulada que vez ou outra atordoava os pensamentos e que não era possível rastrear.

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