sábado, 10 de setembro de 2022

Ode à necromancia

    O esquecimento é o único lugar onde a morte reside. Escrevo em luto pela Ísis, de quem eu apenas lembro de três coisas, e o que caracteriza o luto verdadeiro e que é o motivo pelo qual ele corrói e se aprofunda nas mentes das pessoas é que o luto é apenas um presságio da morte. Enquanto eu ainda lembrar uma coisa sobre a Ísis, ainda não existirá a morte. Também por isso me permito redigir essas palavras, na esperança de que, um dia, as lerei novamente, e haverá registro de que, um dia, existiu uma coisinha chamada Ísis. Ou talvez, algum dia, alguém que não eu leia essas palavras, e a partir delas, dê uma nova vida a Ísis em seus pensamentos. E isso me deixa contente, porque a Ísis merece uma nova vida.

   O presságio da morte atormenta todas as pessoas, em todos os cantos de todos os lugares, porque ao encarar a realidade de que em algum momento, alguma coisa entrará no esquecimento, a proximidade desse momento se torna tátil, e a importância da coisa que será esquecida pesa no coração. Não é uma previsão. Todas as pessoas têm a ciência de que todas as coisas têm um fim.

   Teve um filme que eu assisti no cinema com uma pessoa querida, na época eu saí da sala de cinema destruída e não entendia o porquê. Sentia, mas não entendia. Hoje, não sei se é mérito do filme, por ter propositalmente me feito encarar o luto, ou se o luto é apenas algo que eu enxerguei nele, mas essa é uma dúvida que não me atormenta e que não sanarei, porque decidi que essa é uma memória que não vale o meu tempo de assistir o filme novamente e depois refletir. É uma memória cujos detalhes não quero reunir a ponto de revivê-la ao máximo que me for possível.

   O filme me deixou de frente com toda a ficção que eu premeditava sobre o meu futuro com a pessoa querida, e me derrubou porque na ficção da tela eu enxerguei a possibilidade de que tudo aquilo talvez nunca nem acontecesse. Quando olhei para a pessoa ao lado, senti uma dor sólida, e acho que a sensação de que o meu coração parou naquele momento é porque de fato estive de frente com a morte. O inevitável fim de uma possibilidade. Eu não sabia o nome daquele sentimento, e talvez por isso não pude reagir de maneira melhor do que me rasgar num choro sentido. Aquele sentimento era luto.

   Não me julgo mal por pensar nessa situação com frequência. Não é, para mim, como um terrível apego ao passado que me consome. Todo segundo em que me descuido a ponto de esquecer de alguma coisa que vivi, é um segundo em que perco uma parte de mim, e assim me aproximo da morte, o inevitável momento em que já não lembrarei de mais nada, e portanto não serei mais eu.

   Apesar de que nada do que eu sonhava tivesse sequer acontecido, senti a dor da perda como se tivessem acontecido, porque todos os sonhos são tangíveis. Se não fossem, não haveria motivos para perder tempo sonhando. E todas as pessoas, em todos os cantos de todos os lugares sonham.

   A Ísis era uma gatinha. Cinza rajadinha, acho. De olhos claros, acho. Ela era dócil, carinhosa, e me lembro melhor do meu tempo após a perda dela do que do meu tempo com ela. Passei um ou três meses com ela. Esse foi o tempo que durou o meu sonho, e quando acordei já estava tão apegada a ela que levei um tempo assimilando a realidade até completamente entender que ela - e o nosso tempo juntas - existiu apenas em um sonho.

   Isso acontece com frequência comigo. Às vezes, quando acordo, fico presa a algum acontecimento fictício que sonhei com tanta verossimilhança que levo alguns instantes até entender que é ficção. Ainda assim, são momentos reais o suficiente para que eu considere que, de certa forma, os vivi. A minha primeira lembrança de uma ocasião dessas é de quando eu era criança. Acordei animada e saí vasculhando a casa procurando ovos de páscoa. Não era páscoa.

   Guardo, também, memórias que não tenho certeza se são fictícias ou não. São inverossímeis, mas não ouso concluir que isso as torne fictícias. A realidade é a que escolhemos, e a prova disso é que a felicidade está escondida em todos os cantos de todos os lugares, ao alcance de todas as pessoas e ainda assim algumas se agarram a ela e outras sequer a enxergam.

   O curioso delas é que sempre começam com apenas lapsos. Momentos em que algum pedaço do presente me conecta a alguma memória que eu já não revivia há muito tempo. E, aos poucos, essa memória toma forma e se reconstitui, e a sensação de lembrar é como dar novamente a vida a uma parte de mim que estava morta.

   Como, esses tempos, estava andando de longboard ou de patins. E a sensação do meu corpo fluindo por meio do movimento pareceu lembrar algo de muito tempo atrás. É verdade que eu patino desde os oito anos de idade, e que é capaz que eu saiba patinar melhor do que eu sei andar, mas essa sensação vinha de muito tempo antes de eu ganhar o meu primeiro par de patins.

   Um dos momentos mais marcantes da minha infância foi uma das primeiras vezes em que senti o luto. Eu brincava de saltitar pelas rampas da escola, mexendo os braços como se batesse asas, e acho que em algum momento entre a sensação flutuante de ter o corpo separado do chão e entre possíveis sonhos de que eu pairava por sobre as rampas sem nunca tocar o chão, adquiri a memória física de voar. Uma memória que, assim como as de conversar com o vento e com as árvores, não foi mais tocada desde o momento em que um menino mais velho - da antiga quarta série - interrompeu a minha brincadeira de cavalo alado e disse "Como você é infantil!", e eu, em luto, me sentei e percebi que já não era mais tão infantil assim.

   Mas, andando de patins ou de longboard esses tempos, a memória física de voar trouxe, amarrados em seus fios, minhas lembranças de pairar ou flutuar, assim como a lembrança de que todas as noites, antes de dormir, eu pedia ao papai do céu que me transformasse numa fada. Esta última ainda deve se conectar a outras memórias que ainda não consegui reagrupar, mas se conecta com o fato presente de que se eu me concentrar, se eu fechar os olhos e voltar a consciência para o meu corpo, eu consigo sentir as minhas asas. Retraídas, elas demoram e demandam para se abrir. Mas ainda consigo sentir.

   Teorizo que, assim como as crianças recém nascidas têm a naturalidade para respirar com o diafragma porque ainda não aprenderam a usar o pulmão, e depois que aprendem, deixam de respirar com o diafragma, existam muitas outras coisas que sabemos e que esquecemos, até o momento em que essa lembrança é trazida à consciência.

   Hoje, quando o vento passou por mim - e eu não estava pensando em nada, eu apenas observava o jardim - foi como se eu o ouvisse falar novamente, e me lembrei das ocasiões em que eu conversava com o vento e com as plantas. E tomei isso como eu sempre tomo o despertar desse tipo de lembrança: como a alegria do reencontro com alguma parte de mim antes esquecida.

   A primeiras memórias que tenho sobre lembrar de algo antes esquecido datam de quando tomei antidepressivos pela primeira vez, e de quando parei de tomar antidepressivos. Da primeira vez, quando eu me senti feliz pela primeira vez em muitos anos de angústia, fiquei extasiada por ter me lembrado de como era sentir felicidade. Eu tinha esquecido. Era uma felicidade artificial, hormonal e injustificável, mas me fez lembrar. Quando eu parei de tomar, foi quando eu já era capaz de sentir isso naturalmente. E nunca mais me esqueci.

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