terça-feira, 5 de abril de 2016

O altar de carne

   Lúcia sentou-se em frente ao seu melhor amigo. Havia caminhado na brisa fria e deliciosa da manhã para vê-lo, vez ou outra desviando da garota fina e gelada. Carregara até seu local preferido da cidade uma barra de seu chocolate favorito como uma procissão carregaria a hóstia.
   Agradecia a presença do amigo, ele fora testemunha de sua vida. O crescimento, o amadurecimento, as camélias que caíam. Suas dores todas foram choradas frente às pernas cruzadas e pacientes, intocáveis para ela, mas acolhedoras. Ele fora testemunha de todos os amores que valeram a pena, e fora o colo a quem Lúcia recorreu toda vez que seu vestígio de esperança morria.
   (Da última vez, estava frio. Lúcia tremia. O amor era triste, o dia cinza, azul. Se prontificara a pedir ao grande amigo curandeiro algum tipo de amparo que a fizesse sentir melhor.
   Estava frio. Lúcia queria um abraço quente e confortável; a abstinência pariu um poema.)
   Sentou-se na mesma pedra em que sentara no último dia em que pediu consolo; a barra de chocolate jazia em seu colo. Como uma oferenda, abriu a embalagem acima da cabeça.
   Tinha a plena consciência de que a própria existência era reflexo manifesto da una vontade universal. E assim como todos os lugares e todas as coisas e todas as pessoas são feitas de matéria que flui hora ou outra de uma existência a outra, fez, como faria a algo que significava o próprio significado, a oferenda à vontade obscura e subconsciente de seu eu.
   (Houve uma noite triste em que estivera naquele lugar só e apenas a existência do amigo bastou para que soubesse que só tinha a melhor companhia.)
   A primeira mordida que deu no chocolate preencheu toda a cavidade da boca, passeando e estimulando as papilas gustativas com a intensidade suficiente para que Lúcia fechasse os olhos e deixasse que apenas o chocolate existisse, e depois, que corpo e chocolate e o local e a mente e o melhor amigo (que era parte da mente) se tornassem um.
   Enquanto comer fosse a vontade e chocolate fosse o que a satisfaria, Lúcia deixou que o corpo inteiro fosse a vontade, e comeu amando o leite e o cacau e a fábrica e todos as outras variantes desconhecidas que tornavam possível aquele comer erótico do qual o chocolate foi feito vítima.
   E naquele momento, o chocolate se fez o melhor amigo, e guardião de suas mágoas e seus amores e sua magia, e o chocolate foi testemunha de toda a informação mnemônica que caracterizava Lúcia como uma existência aparta do todo.
   Lúcia deixou que a carne fosse o altar, e o chocolate a oferenda, e a oferenda, carne, e a carne, deus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário