segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Pagu

   Para a autora, o nome era primordial, portanto, um ou dois nomes universais para todos os personagens eram bem cabidos. Mas ainda assim, acima do nome está a crônica, e para eles, que são aquele empurrãozinho que às vezes falta de escrever, essências pútridas das linhas que bem poderiam não existir, o nome não era importante, desde que se fizesse questão de demarcar que a protagonista era uma "ela".
   Ela lembrava bem da cara do pai quando chegou em casa e a viu toda pronta. "Vai sair?" quis saber o pai, já constatando a resposta."Vou", respondeu. Havia esperado o primeiro sol depois do inverno para vestir a personalidade sensual e misteriosa, descoberta em lugares estratégicamente provocantes e não deixando a mostra nada daquilo que preferia desfrutar em íntima privacidade.
   Feliz portadora de um corpo e tanto, ela saiu com o corpo e o amor, e enquanto raiava o sol, foi toda corpo e toda amor. Porém, como são todas as mulheres de personalidade sensual bruxas, e são todas as bruxas filhas da lua, à primeira instância da noite a bruxa deixou de ser amor e corpo e se tornou poder e alma.
   Almejava mais que tudo o poder. O poder de caminhar com o queixo erguido, o poder imenso do rebolado do corpo provocante quase imperceptível entre o negro da roupa e o da noite, o poder ser só bruxa e alma e noite, o poder chegar em casa sem menos poder, nem menos roupa, nem menos corpo.
   Até que viu, numa das ruas sem saída que atravessava pelo caminho, um grupo de cinco "eles" que, somando as idades, não se chegava a 65, pedalando devagar em seus instrumentos que eram como extensão do instrumento. Continuou andando, mentalizou o poder da lua e nada de ruim poderia acontecer. Até que depois de ver, ouviu.
   O "psiu" e o "ei, gata" se fizeram ouvir mais baixo que os barulhos das correntes de bicicleta. E tão baixo quanto são baixos cinco "eles" perante a lua. Baixo como são baixos eles que precisam andar em cinco. Tão baixo como é baixo o ollhar de quem enxerga corpo, mas não enxerga alma e poder.
   A mão que soltou do guidão para apalpar a bunda era só uma mão, e aquele "ele", só um corpo, enquanto ela, bruxa e filha da lua, já era alma e poder e feitiço.
   Ela continuou andando, poderosa e com o queixo erguido, bruxa, e sabendo que sabia ser amor, e muito mais do que só corpo como era apenas corpo aquela mão após o toque. Chegaria inteira, chegaria bem.
   Até que o feitiço surtiu efeito e, a três metros de onde a bruxa estava, a lua devolveu a moléstia e derrubou a correia da bicicleta do último dos cinco "eles". "Ela" sorriu, e os outros baixos que eram ainda mais baixos tendo um elemento a menos, aceleraram a pedalada e sumiram longe.
   Cinco passos bastaram para que ela, ainda sorrindo, se aproximasse do moleque caído que até tentou fugir, mas não conseguiu arrumar a correia.
   E sorrindo, como sorria a alma muito maior que o corpo, bruxa, ela perguntou:
"Você se machucou? Precisa de ajuda? Quer que eu ligue pra sua mãe?".

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Geada antiprimaveril

As borboletas voavam longe.
Feito nome de anjo se ouvia
A dança alegórica semiaustera
Anunciando à ventania:
Vem chegando a primavera.

Aos votos que sobe o sol
Ao doce alvorecer
A vontade do oceano
Se vociferou de florecer.
Seu nome é de demônio, insistiu,
Água mole em pedra dura
Tanto bate até ceder.

Eu sou assim:
Toda corpo,
Toda cor,
Encorpando ao feitiço
O acordo omisso na minha dor.

Inverno após inverno,
Passa o tempo e eu sentada
Esperando florecer.

Mas sou assim:
Toda a torto,
Toda ator,
Incorporando meu grito omisso
Em todo botão de flor.

Meu coração é assimétrico,
É assindético,
Sintético, sem nexo,
O meu corpo, convexo,
E o plexo,
Meu cemitério de borboletas.

Só sei amar e escrever.
Misturam-se em meu sangue
Esse não saber tão pulsante
Entre a ferida aberta berrante
Que me faz aberração.

Era mais fácil quando eu só sabia escrever.

Vou ouvindo o oceano
Engolir a primavera,
Digerir as borboletas,
Ainda não é tempo.
Agente do meu aparto esbanjo
É meu nome de anjo afastado ao eterno
Do segundo primeiro dia de inverno.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Lágrimas de uva

Uma silhueta se deixa derramar sobre a
                   [minha parede dos fundos.
É inesperada,
É desesperada,
É desumana.
Trôpega ao inequilibrar suas formas,
É uma silhueta narcisina,
E invasiva
E masculina.

Um ego mimado,
Arquetípico,
Arquejado,
Arrastando-se de sombra em sombra na
                   [minha parede
Narciso inconciso,
Cansado
E com sede.

O álcool na minha boca não é licença
Pra sombrear-se esse vulto alcoólico
Fedendo ao vinho mais barato da
                   [dispensa.
Nem a necessidade de barulho
Do disfarce maltrapilho,
Pedante,
Insignificante
É mais importante que a paz do meu
                   [silêncio.

É vulto de amor barato,
Destroçado,
Distorcido,
Chorando suas lágrimas de uva
Feito estanco
Vertendo podridão
No meu tecido branco.

Esse amor insatisfeito, invasivo,
                   [imperfeito,
Não é amor,
É projeção que se esconde,
É sede,
É um vulto atirado
À minha parede.

Não vou assumir sua taça
Desprotegida,
Estilhaçada,
Espairecida
Como se amor significasse a sombra
Ou significasse cada lágrima derramada
Ou significasse,
Ma(i)s nada.