quarta-feira, 12 de abril de 2017

0,000000002 fps

   As primeiras lembranças da minha vida estão dispostas num sistema de quadros mal dispostos pela vasta e desconhecida linha temporal do começo. O começo é um conceito quase indefinido, sim, porque não há evidência de que não tenha sido quando minha bisavó conheceu um cara, espanhol e bonito, por quem se apaixonou, e pelos caprichos da família teve que se casar com o italiano que foi meu bisavô, bem como não há evidência de que o começo está na juventude da mãe de minha bisavó, nem na minha avó, e nem precisamente no útero fecundado da minha mãe. E estas histórias que me precedem são feitas de lembranças com muito menos quadros que as minhas, visto que a fotografia se popularizou muito mais na parte do tempo pertinente a mim.
   Mas o começo é, precisamente, dejeto de uma fotografia da minha mãe com a barriga grande dos oito meses em evidência. E é esse o começo porque a narradora sou eu e é este o recorte que pretendo fazer.
   Não me lembro de nada, isso tudo me contaram os outros. São visões de mim: visões de um eu que não conheci, perspectivas de muitas pessoas que não são eu. Mas é apenas a partir disso que eu consigo entender onde foi que destrambelhou a minha vida.
   Dizem que o útero é confortável, nutritivo, aconchegante, e dentro dele não se tem noção do maior temor que assombra a vida: a morte. Eu não me lembro de ter nascido. Eu apenas existo, e acredito quando me dizem que nasci porque há registro de fotos de um bebê, e depois de uma criança, e depois de uma adolescente que na evolução de suas feições se parecem muito a mim. E são quadros distanciados demais para que se crie movimento suficiente para uma memória.
   A exposição à luz, à interação e à morte foram um erro imperdoável aos olhos fechados de um eu bebê. Alguns colos, por vezes, consolavam. Por outras, reinava o desalento. E hora a hora daquele estágio intransitável, começava a roçar a pele macia o tempo. A criatura egoísta, chorona, cagona e comilona entrou, então, em contato com o tempo, e este passou a doer menos, até a aquisição da linguagem e da consciência: eu sou uma criança. Não me lembro de nada, isso tudo me contaram os outros. Mas foi uma transição dolorosa.
   E a criança é rainha do mundo. E fora o nascimento, nunca se produziu angústia comparável à de ter que limpar o prato e engolir a comida que você não gosta, e de ter que limpar o bumbum sozinha depois de fazer cocô, e de não poder registrar sua expressão artística com as canetinhas na parede. Até aqui, não me lembro de nada, e relatei o que me contaram os outros.
   É mais ou menos a partir dessa transição, as memórias deixam de vir dos frames de fotografias e do que me contaram os outros, e sim da imagem aproximada que meu cérebro criou a partir de tudo o que já vi. E, embora às vezes com maior duração, nem sempre as memórias são tão contínuas como as recentes. São cenas isoladas e quadros perdidos naquilo que marcou o afogo.
   Minha primeira lembrança concreta da infância foi uma bronca que levei de meu pai. Me lembro da bronca em específico, mas não do delito. Meu pai me disse que o motivo foi a birra que eu fiz porque não quiseram comprar um chocolate, e eu não duvido.
   E quando eu tinha meus onze anos, chorava por ter que lavar a louça. E a infância nos é nostálgica porque está sempre sendo tomada uma liberdade: chega a hora de sair do útero, a hora de limpar o bumbum, a hora de ter que arrumar o quarto, e de cada vez ter direito a menos atividades prazerosas.
   A mais contraditória transição da qual tenho consciência é a da adolescência para a vida adulta. Porque chamamos a adolescência - ou a ela forçamos - "período de individualização". Mas o que nos golpeia, do nascimento à morte, é o abandono de todos os caprichos, e do tempo livre, e do nosso eu egoísta, e nos tornamos cada vez menos indivíduo e mais parte de um mecanismo maior. E na adolescência, entramos em contato com esse indivíduo anterior, para nos desassociar dele e entrar para a sociedade.
   Mas pouco a pouco mais quadros continuaram sendo produzidos mesmo apesar dessa transição conturbada que é tornar-se adulta, e alguns deles me fazem perceber que sou parte importante do mundo. Ou ao menos da parte do mundo com a que eu já tive contato; e essas são imagens que ninguém me contou: eu as captei com meus próprios olhos.
   E são cenas carinhosas, de quadros poucos, que isolam as situações em que não fui apenas eu, e sim nós. No menor número possível de quadros, é a textura macia da bochecha da minha avó e é o abraço da minha mãe. E toda a história da qual meus filhos não vão se lembrar, mas eu vou dividir com eles minhas imagens. Como, por exemplo, se eu fosse fotógrafa, eu teria registrado pra sempre o papai sorrindo pra mim de olhos fechados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário