domingo, 8 de abril de 2018

O livro que eu não terminei

   Não estava pronta. Lúcia havia planejado a metafora inteira, todas as personagens e seus passados heróicos. Havia criado os homens, os deuses, e as musas que cantariam sua obra. O universo inteiro do livro se infantilizava para mascarar suas mágoas. Dançava em suas escritas de linha que narravam a vida emocional de uma costureira. Mas a história não estava pronta.
   ‎Havia um receio, que flertava em partes com a mesma dor que sentira ao conceber alguns dos seus piores poemas, e em partes com a tragédia real que fundamentava sua visão infantil e rancorosa dos acontecimentos. Não estava pronta pra rasgar uma promessa, havia prometido se vingar em um livro.
   ‎Um boneco vodu preso pelo pescoço e pela simbologia a encarava da estante. Lúcia o costurara com saudosidade a uma lembrança. Bibliográfica, é claro. Tá tudo no livro. Como a personagem principal do livro o fizera, costurando pedaço a pedaço alguns retalhos de coração.
   ‎A linha era um tipo de metáfora pra vida, e quando uma costureira começava a embaralhar sua linha era sinal de que o destino a buscaria. A protagonista não tinha nem teria esse problema, porque sempre havia um pouco de sua linha no coração do boneco vodu. Que não estava pronto.
   ‎Para encarar de cima do armário e desdenhar a escrita falha de alguém que não estava pronta pra mostrar suas feridas em história, o boneco já tinha seu camarote e se fazia público do fracasso. Sabia que era uma história ruim. Lúcia evitava olhar em sua direção. A não ser nos dias em que alguma lembrança pictórica tão semelhante àquele boneco e à metáfora surgiam e a vida recomeçava a imitar a arte.
   ‎O boneco se fazia testemunha de outros tempos e de dias, talvez, melhores, mas em que Lúcia não esteve pronta. Foi a aura desafiadora de tudo o que o boneco representava que fez com que Lúcia jurasse nunca terminar a história.
   ‎Às posteriores cobranças de seu estimado boneco, relutava, respondia. "Eu não vou te dar vida. Eu não vou te dar vida."
   ‎

Nenhum comentário:

Postar um comentário