quinta-feira, 18 de junho de 2020

A Dama de Copas

   Eu achei que demoraria a entender o que se passava na cabeça de Lúcia. Foi o que eu achei há tempo suficiente para concluir, agora, que na verdade eu nunca entendi. Mas isso seria a mais pura maturidade da minha parte, configuraria a serenidade da mulher que aceita o passado e não se deixa atormentar por seus fantasmas. E caso fosse eu tão sábia e tranquila, não estaria agora, às quatro e meia da manhã, refletindo sobre os detalhes de alguns acontecimentos, imaginando coisas que Lúcia nunca confirmou, e pelas quais deslizou vezes suficientes para também nunca negar. E a especulação me aborrece à medida que me afasta da aceitação, tal como um medo que me afasta do meu sonho de rocha, em que sou um ídolo esculpido trazendo certeza e conforto perante meu pedestal.
   Enquanto não raia o dia, tento não apenas me lembrar de como surgiu essa bruma quase mitológica entre Lúcia e eu, mas também dos traços de seu rosto. Porque eu faço alguma ideia arredondada de como eram seus cabelos, seus olhos e sobrancelhas, mas não sou capaz de mesclá-los em uma imagem concisa em minha mente, assim como não consigo traçar com precisão os acontecimentos que teciam a densidade da névoa. Mas, até que pescando algum pensamento na bruma, algo me mordeu a isca.
   Era a primeira vez que jogávamos canastra. Eu estava um pouco nervosa, porque apesar de ter admirado a figura de Lúcia havia tempos, a partida foi como uma porta para conhecer a pessoa que olhava de cima de seu castelo de cartas. O par de Lúcia, no jogo, parecia não fazer muita diferença nos jogos. Talvez por inexperiência, imagino. Ela, por sua vez, era como um exército de uma mulher só. Colocava as cartas na mesa, começava e terminava suas canastras. Me entregou o rei de espadas que me deu a vitória, alegando que não queria descartar sua carta da sorte - um valete de paus. Foi quando entendi o quão supersticiosa era, com certeza mais até do que eu. E depois, tive medo do fim da rodada, porque em todas as partidas seguintes, a sombra de seus olhos parecia me devorar toda vez que meu rei de espadas aparecia novamente.
   Mas, após esse primeiro episódio, tudo me parecia bem. Nossos castelos de cartas, com o tempo, pareceram sólidos, como laços, e as jogatinas se tornaram um hábito. E a superstição, comum a nós duas, nos convidou em certo momento a jogar tarô juntas. Na tiragem que ela fez para mim, tudo indicava para tempos tranquilos. Amor, diversão, serenidade. Eu não sabia por quanto tempo isso se extenderia pelo futuro, mas eu sabia que - e especulo até hoje o porquê - ela lia cartas sobre o meu presente. Talvez estivesse presa naquele momento. E talvez tenha continuado presa nele para sempre, ruminando a minha fortuna durante a sucessão de sombras que pairou sobre nós nos próximos instantes.
   A primeira carta que chamou atenção quando chegou minha vez de ler a sorte dela foi uma dama de copas. Lúcia e seu exército de uma mulher só invadiram a minha magia, interpretando sozinha suas cartas como melhor lhe convinha. "Entendi. A dama de copas sou eu", começou. "É claro, não tem carta melhor para me representar. Sou passiva demais, não falo muito sobre meus sentimentos". E assim me tomou a leitura inteira, assim como tomou para si a metáfora e o apelido de Dama de Copas. E nada do que previu para si mesma aconteceu. Talvez por não lhe caber o direito de interpretar as cartas que foram abertas por mim.
   Mas a superstição que Lúcia vestia como personalidade era importante demais nutrindo suas inseguranças para que fosse deixada de lado só porque uma previsão não se realizou. Após botar em mim a culpa de não saber ler cartas, começou a ler uma carta para cada dia. E tudo o que acontecia de ruim em seu dia, projetava em alguma figura escondida no canto da carta, até o dia que decidiu não sair de casa porque teve uma leitura de muito azar.
   Nesses tempos, começou a chegar atormentada às nossas jogatinas. Muitas vezes não conseguia um par para a canastra, fazendo com que eu e meu Rei de Espadas tivéssemos que jogar outro jogo, como pife ou buraco. E toda vez que, por obrigação, meu Rei de Espadas se oferecia para jogar em dupla com a Dama de Copas, para que ela não chorasse seus valetes perdidos, a bruma se fazia tão visível que ele se sentia triste por não poder jogar comigo. E parecia ecoar pela névoa o quanto ela remoía aquele primeiro descarte, e o quão mal ela disfarçava a angústia, trucando minha paciência.
   Após um tempo, a Dama de Copas e eu paramos de nos encontrar. E eu tive a sensação de que algo peculiar acontecia com as cartas dela, como se um número ou figura fosse malicioso o aterrorizado. Mas isso eu posso apenas supor. Assim como suponho ter imaginado enxergar na névoa a imagem de que nossos castelos de cartas, que antes pareciam firmes como laços, eram apenas castelos de cartas, que se derrubavam em meio à tormenta. E então não soube mais nada dela.
   Não até que um conhecido em comum comentou algo sobre o quanto ela se distanciou dos amigos e como ninguém teve notícias dela antes do internamento. Ele não disse muito, e eu não quis perguntar muito, mas os analistas diziam que ela não falava mais nada, que passava o dia escrevendo coisas ilegíveis - talvez amarrações ou feitiços? - numa carta de baralho. Eu não quis perguntar qual carta, nem quis perguntar nada a mais. Continuei seguindo meu caminho como se nada disso me atordoasse e me parecesse normal que ela tenha ficado louca. E talvez essa noite não fosse passada em claro se eu ousasse perguntar algo a mais.

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