sábado, 27 de junho de 2020

Memórias do Oceano

   Começa na segunda-feira. Nos poucos (e suficientes) anos em que baseio minha curta experiência de vida, sempre houveram segundas-feiras. Eu seria muito mais velha se a idade fosse contada pelo número de segundas-feiras sobrevividas. A vida é feita de segundas-feiras, e eu sempre passo empurrada.
   Sou inteligente. Sempre fui uma estrela. Quente, viva e feliz. É domingo. A vida começa amanhã. Mas estou sentada na cama, escrevendo e cogitando um café quente ou uma estrela que talvez pudesse mudar a minha vida. Estou tão feliz que tenho medo de dormir porque não quero que segunda chegue nunca. Tão viva que sou medalha de ouro no esporte de existir de segunda a segunda. Tão quente que as centenas de pedaços de vinil na embalagem de cartolina azul clara ao meu lado pareciam derreter sobre o meu coração, eu não sei se quero ouvir aquela música. Talvez na segunda. Eu queria ser menos inteligente para poder desligar a mente, dormir e aceitar tudo como se fosse uma dádiva. Sempre passei empurrada porque a informação proveniente da escola é tão selecionada e manipulada que não vale a pena me esforçar pelo que se dissipa ao longo das segundas-feiras.
   O roteirista é um sujeitinho ridículo. Não tem criatividade pra fazer surgir uma nova fábula. Muda o enredo, os personagens, o foco narrativo, as segundas-feiras e ainda assim as semanas são sempre iguais. Elas chegam em uma escala cronológica que definha. Nascer é a pior dor à qual todo ser humano é sujeitado. O cérebro bloqueia as memórias do ato porque são um trauma. Além do trauma, são o aviso de que quanto maior e mais exigente for a próxima segunda-feira, mais já estamos acostumados a abaixar a cabeça e fazer o que é esperado (e por quem o fazemos?). Eu não quero fazer nada. Nem por mim, nem por ninguém. Não tenho sonhos suficientes para fazer algo por mim. Nem ninguém por quem me arriscar.
   Não quero procurar por alguém que me faça querer me arriscar. Eu não vou esperar até que algum amor incondicional justifique a minha existência. Já amei e já fui amada e, para mim, basta.
   As células velhas que sobreviveram a todas as minhas segundas-feiras formam um corpo repleto de feridas que cauterizam na água salgada. O mar levou, quando eu era menor, uma pulseirinha de ouro onde estava inscrito meu nome de batismo. De uma corrente tão fina e frágil que nunca me prenderia àquele nome ou àquele ouro. Aos oito anos, o mar me trouxe o meu primeiro amor. Ele tinha nome de anjo, eu não tenho nome. Minha avó sempre me disse que amor de praia não sobe a serra. Ela estava tão encantada com a tradição do ditado popular que não teve tempo de perceber que conheceu meu avô no litoral.
   Eu tenho tendência de amar pessoas tão tristes quanto eu.
   Há pouco tempo, voltei de encontro ao mar. Na beira da praia, existem aqueles fins de onda fracos que cobrem devagar a areia à medida que a maré sobe. Tive medo de sair de casa com os pés descalços. Minha mãe sempre me disse que eu tenho mãos quentes e pés de cadáver. Meus pés estão sempre frios. Esse negócio de ser enjoada com sapato - já que o pacote nascimento grudou uma placa de "feminino" na minha virilha, e os sapatos para essa marca de ser humano são projetados visando estética, e não conforto - me fez ser a criança que estava sempre de tênis e meia porque todos os sapatos abertos machucam a carne. Sou tão acostumada aos pés frios que me sinto nua se estiver sem meias. Tive medo de sair de casa com os pés descalços e tive medo de tocar os fins de onda com os pés.
   O oceano conecta todos os lugares e todas as pessoas e todas as memórias que tocam sua água. Conecta a podridão do esgoto jorrado impiedosamente ao mar - e a sensação ruim ou aliviante que todas as pessoas têm enquanto cagam - e conecta todas as formas fascinantes de vida subaquática, conecta todos os navios que o pensam dominar e seus timoneiros solitários que não compreendem a crueldade da vida em terra, pode reconectar duas pessoas conhecidas e distantes que se banham ao acaso ou até mesmo reconectar uma alma velha de criança ao nome roubado que nunca será seu. 
   Os psicólogos tomam oceano como metáfora do subconsciente humano. Ao tocar seu oceano interior, uma pessoa retoma suas lembranças mais líquidas e dolorosas.

   O disco em pedaços.
   A cada segunda-feira que eu venço, sou menos eu e mais o mundo. 

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