quarta-feira, 12 de julho de 2023

Sobre os prazeres contemporâneos

    Estávamos no Jerônimo do Mueller. Não tem mais Burger King lá, o Jerônimo tá ocupando parte daquele espaço. É bem menor que o BK era. Eu nem lembro o que a gente pediu, nem importa. Você não parava de olhar pra mim enquanto eu comia o sanduíche igual a um goblin, me sujando de molho e derrubando farelo e pedaços de comida. Por um lado, eu fiquei nervosa, talvez um pouquinho constrangida, tentei comer certinho igual gente. Obviamente não consegui. Por outro lado, você não me olhava com nojo. Nem olhava ao redor com vergonha. Não me olhava com repreensão, nem com raiva, nem, debochando de mim. Você me olhava com uma carinha apaixonada, e só. Quando demos as mãos, você falou que isso era bem gay. Eu gosto de coisas gays. Era um encontro. Escrevo em parte para não me esquecer dos detalhes porque te amo.

    Muito disso é sobre você. Nem tudo, mas muito. É que eu fico fascinada com os detalhes do capitalismo caindo aos pedaços, com a passagem do tempo e com as marcas que ele deixa nos lugares e nas pessoas, com tudo o que se transforma, e você, que jamais será um detalhe, mas que também me fascina, é como um pilar narrativo ao redor do qual todo o resto acontece. A passagem do tempo com certeza tornou muitas coisas piores, coisas estas que perdem a relevância ao seu lado. Não tem mais nenhum CD em loja. Só dá pra comprar em sebo, ou pela internet. Ainda assim, naquele dia, eu levei um CD comigo pra casa. O primeiro que você me deu de presente. E eu reparo alguns episódios como paralelos da minha vida, apenas agora, pensando nos detalhes e coincidências, porque na hora não dava pra prestar atenção nisso porque você estava lá.

   Eu nem gosto mais de Burger King, acho que enjoei. O lugar que a gente sentou era tanto faz, desde que desse pra ver o painel com o número dos pedidos prontos. Todas as cadeiras eram ruins mesmo. O ambiente, péssimo, cheio de gente, não dava pra conversar. Mas a gente nem precisava, bastava você me vendo comer. A fila era eletrônica, o modo de pedir pelos totens também, a janelinha pra retirar o pedido, minúscula. Não sei se tinha letreiro luminoso ou não, mas acho que não. Letreiro luminoso é meio brega hoje em dia.

   Apesar de não ter CDs, a gente deu uma volta ridícula na americanas que foi divertida e eu não me lembro por que. Ela não tá mais caindo aos pedaços por motivos criminosos. Mas o capitalismo tardio não é assunto. É um detalhe pintando os cenários por onde a nossa história se escreve.

   Essa memória fica guardada numa caixa de CD, uma que está inteira, sã e salva. E agora nestas linhas. Nunca mais acontecerá nada exatamente como foi essa memória, nem eu sentirei as mesmas coisas que senti aquele dia novamente. Porque num dia o pássaro azul canta, no outro eu saco a minha pistola. Não é nada tardio nem antecipado, parece que o tempo se deslocou de volta para o lugar onde deveria estar. Como ele, tudo sempre seguirá se transformando, e cabe a mim apenas preparar caixinhas, já abertas, para as próximas memórias.

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