domingo, 30 de agosto de 2015

O cão e a cobiça

Pelo espelho da mente o poeta observa
Beleza lírica tornando-o pleno,
Ao queixo caído penetra o veneno
Enquanto chora interna Minerva.

Caído da boca, coração em conserva
Transcende do seu sentimento dreno,
Ouve do diabo o argumento ameno,
Do querer ter tudo não mais se enerva.

De tudo o que dói, cobiça é o cão,
Poeta sucumbe à feitiçaria
E vende a alma em sua tentação.

A regra é clara como a luz do dia:
Dá pra ele ficar com o coração
Ou escrever alguma poesia.

Para gostar de escrever

   Sou filha de escola pequena. Não em extensão, visto que para a gente que é pequena a eternidade que durou até a quarta-série (não me importo com o nome novo de "ano" que o governo deu à minha amada quarta-série), nunca seria possível explorar todos os balanços ao máximo nem contar as partes do escorregador em que a tinta desbota. O que empequenava a minha escola era a pouca quantidade de alunos, geralmente uma turma por série de um número de crianças que oscilava entre o 17 e o 25.
   Reflexo da baixa mensalidade, do enorme número de bolsistas - e eu, filha de professora, me encaixava nessa categoria - e dos poucos alunos, a estrutura, e logo a biblioteca da escola, não era daquelas.
   Meu lugar preferido era aquela salinha do tamanho de um banheiro doméstico de classe média-alta cheia de estantes com não muitos livrinhos e um tapete cheio de almofadas para sentarmos e lermos.
   Quando éramos trazidos à biblioteca, nas aulas de língua portuguesa (que englobavam a literatura e a redação), a maioria das crianças fazia uma roda circundando o Guinness Book ou a colorida enciclopédia Disney, e eu, desinteressada em informação inútil e talvez cansada de títulos da série Vagalume que todos que passamos pela quarta-série conhecemos, como A Ilha Perdida ou O Escaravelho do Diabo, tinha como favoritos uma pequena montanha de livros (talvez uns 9 ou 10 volumes) desconectados entre si que fizeram meu gosto pela leitura e pelo humor levando o conveniente título "Para gostar de ler".
   E já desde aquela época eu crescia escritora. Mas, lendo apenas por diversão e escrevendo o que eu sabia escrever (e com o que gostava de brincar), meu caminho desrumado pelo mundo das palavras seguiu os versos da poesia, e com a facilidade que Luís Fernando Veríssimo, Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade me divertiam naquelas tardes sob a janela da salinha biblioteca, acabei deixando de lado a busca pela crônica.
   Aprender sobre a crônica nas aulas de redação dificultou mais ainda. Hoje, estudante de Letras, li sobre a história e a teoria da crônica e ainda não sei explicar com segurança o que ela é. Mal pude naquela época. Mas, escrever sempre me fez bem, e a minha incapacidade de prestar atenção em uma única coisa ou a ocorrência de algum sentimento paranormal ou a graça de sentir a caneta riscando o papel do caderno com algo que não fosse matéria a ser estudada ou alguma deixa de fluxo de consciência acabaram por acumular na gaveta de baixo da minha escrivaninha uma pilha de rascunhos de momentos ridículos e perdas de tempo literárias que estava, até hoje, a esperar que o tempo ensepiasse os papéis e borrasse a tinta das canetas e quem sabe um dia puísse todas as folhas.
   Mas, me divertindo recentemente com um certo cronista que adora escrever palavrões e do qual não pretendo citar o nome e lendo um pouco sobre a história da crônica, todos aqueles rascunhos me vieram à mente e começaram a doer no coração. E o convite a continuar a escrever foi de Oswaldo Montenegro, que tocava Intuição há mais ou menos uma hora no rádio do carro quando eu vinha para casa. E Oswaldo está certo. O mundo já está cheio de best sellers e de clássicos da literatura e eu sou só eu. Não preciso de mais para gostar de escrever.
   Tenho meus problemas medíocres, meus amores medíocres, meu cotidiano medíocre e tudo já basta para me maravilhar da vida todos os dias. E, dando atenção à simplicidade de tudo que pertence à minha vida - a escola simples, a biblioteca simples e a literatura simples e medíocre por definição -, sou uma pessoa medíocre com problemas medíocres de origem medíocre que lia mediocridades e agora escreve mediocremente. Mediocremente e satisfeita. E a crônica... Ah, como é gostosa.

sábado, 22 de agosto de 2015

Gris

Para ser sincera,
Sinto um vazio
Como se depois do primeiro
[dia de chuva da primavera
Encarasse numa poça d'água
O reflexo de um ipê sem flores
[amarelas.
Ou o meu reflexo
Carregando um ramalhete sem
[cor
Ou minha reflexão me
[encarasse magoando
Feito mau agouro de mim
[mesma
A mando desse estúpido
[coração amando.

Sinto tua falta
Em todas as cores que não
[distínguo,
E quanto mais cresce em mim
[essa quimera,
Mais mínguo
Te procurando nas flores da
[primavera.

Ensepiecendo na tua ausência,
Sou insípida insuficiência
E vejo gris
O amarelo que não tem cor
Sem teu sorriso.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Bohemian Rhapsody

   O display do rádio relógio digital parecia um borrão de luz, dando presença - e não vida - ao quarto escuro. Lúcia fechou os olhos, esfregando-os, bocejou e abriu os olhos novamente. O horário que os pontos de luz verde marcavam seria doloroso se Lúcia tivesse a certeza de estar consciente o suficiente para se importar com a hora da madrugada em que o sono foi interrompido.
   Já recuperando a despertude, uma mistura de náusea e pânico fez fraquejarem o quadril, a virilha e o estômago, cada um destes a seu modo indefinido entre o bom e o ruim jeito de arrepiar, ao farejar o cheiro azedo do álcool que amanhecia raso nos fundos das garrafas espalhadas misturado ao cheiro forte do cinzeiro molhado. À medida que Lúcia enxergava os dejetos que compunham a morbidez do quarto, seu cérebro recriava, segundo a segundo, as cenas do episódio ocorrido horas antes, no início da noite.
   Bebeu os quatro dedos de líquido restantes à garrafa de vodka e deixou que os demônios do medo, da dúvida, da raiva e, principalmente o da coragem - o mais perverso e destrutivo de todos - tomassem sua psiquê. O "Eu vou matar vocês dois!" proferido horas atrás parecia, agora, mais que uma simples exclamação de raiva e desapontamento, um atestado do destino cru, em cuja inevitabilidade a distorção mental causada pelo álcool fazia que Lúcia cresse com convicção.
   Foi com a convicção de não estar dormindo nem acordada que o ímpeto da vingança levantou seu corpo da cama e cambaleou-o até a porta que fazia fronteira com o frio da madrugada.
   O vento soprava incansável e incessantemente como o fluxo da consciência que beirava entre o semiconsciente e o inconsciente alcoólico na cabeça de Lúcia, que perguntava ao próprio discernimento se o vento vinha para atestar mudança ou sabedoria. E como todas as outras vezes em que o caos indefinia o que pensar, assumiu como certas as duas possibilidades,
   Os tropeções não a impediram de chegar ao endereço tão visitado anteriormente, casa de tantas lembranças que pareciam pertencentes a uma vida que não à sua, pois a vida nunca lhe teve simpatia. Passou fácil pelo porteiro que, inocente das mudanças que o vento trouxe, a chamou pelo nome e disse bom dia. Lúcia passava com o rosto virado para o lado para que ninguém visse a cara de bêbada. Tocou a campainha decidida. Estava nojenta, fedia, tinha vontade de vomitar. Os olhos estavam inchados. Sabia que em algum momento seus pensamentos culminariam ao delírio. Já não era a mesma pessoa, sentia-se morta. O corpo servia apenas para fazer o que deveria ser feito. Estava mais do que decidida, seriam os dois e depois ela.
   De dentro do apartamento, a voz de uma mulher vulgar e de espírito nojento anunciou "Amor, eu vou atender à campainha!". A voz ridícula despertou a colossalidade do demônio da coragem, que já tinha uma mão no gatilho e aprontou-se a gritar "Sua vadia!" no momento em que os cinco tiros empurravam para longe a vida da bela moça loira que vertia em sangue por abrir a porta.
   Lúcia deu cinco passos para a frente, pisando sobre o corpo-capacho no passo número um. Sabia bem o caminho para o quarto. Ele tinha os olhos caramelo bem arregalados e não se movia, já olhava fixado em algum ponto para além da porta do aposento quando o revólver entrou no quarto seguido de Lúcia. O demônio da coragem parecia não existir no momento em que ela o viu fraquejar. Queria pegá-lo no colo e dizer que tudo ficaria bem. Tarde demais, dizia o demônio. E você é a próxima. Mas a mente de Lúcia abriu espaço para o demônio do medo (des)controlar sua mão, que já começava a tremer. E a mulher já havia caído desmaiada antes dele terminar de pronunciar seu nome. E antes do desmaio, nunca havia existido a certeza de estar fora do universo onírico.
   "Você tem direito a uma ligação". Lúcia levantou o olhar. Estava numa sala mal iluminada, apenas quatro paredes, uma escrivaninha, um aparelho de telefone, duas cadeiras e uma porta cheia de trancas. Nada com que distrair o olhar. A policial apontou o olhar para o telefone e Lúcia discou o número da mãe. A velha não atendeu. Lúcia prestou atenção minuciosa à voz confortável da mãe na mensagem da caixa postal. "Oi, sou eu! Devo estar ocupada e não posso atender, mas você pode deixar uma mensagem para mim assim que o telefone fizer 'piiii'!". Um nó na garganta formou-se e rapidamente desmanchou nas lágrimas que interrompiam o recado à caixa da mãe.
   Explicou tudo de que lembrava. A sensação de ter matado uma mulher a fez refletir sobre o quão cedo tinha jogado a própria vida fora. Apertou o coração imaginar que a mãe choraria ao ouvir o recado. Foi difícil imaginar a mãe tendo que seguir a vida e agradeceu à secretária eletrônica por não ter que falar com ela. Ainda sentia vestígio da embriaguez - nenhum relógio na sala mostrava quanto tempo havia passado - e percebia o delírio se aproximando quando lembrou de pedir que a mãe deixasse aos familiares e amigos o recado de que ela os ama. E o tempo da ligação acabou quando Lúcia se deu conta de que se nunca tivesse nascido, nada teria acontecido.
   Lúcia foi trancada na sala e deitou-se em um canto, no chão. Os quatro demônios a recebiam na suprema corte da culpa. E a condenavam. Lúcia tentava fugir, e como um coro maldito, os demônios a impediam até mesmo de completar suas falas. E o segundo período de sono foi mais perturbador que o primeiro. Estava cansada de ter que suportar.
   Não foi do dia para a noite que a sanidade transformou-se em inquietude em cada arrepio que a fraquejava enquanto aguardava insone por um sinal de saudade. Mas não. Já fazia um mês que ele a havia abandonado para ficar com a mulher loira e bonita. Lúcia foi mais que descartada, simplesmente foi apagada como se nunca tivesse existido. Foi amada e deixada aos cães da morte. E, antigo companheiro, o demônio da saudade a fazia sentar no sofá e encarar o telefone por horas, esperando uma ligação preocupada, um sinal de arrependimento, mas nada. Cansou de contar as vezes em que atendeu o telefone e baixou o sorriso para os moços do telemarketing.
   A boemia foi consequente. Fumava o cigarro que tinha gosto de beijo. Bebia qualquer coisa. Parava para morrer cada vez mais nas músicas tristes que preenchiam os lugares vazios. Caminhava pelos lugares necromânticos que ressuscitavam lembranças dele. E no início da noite do assassinato, caminhava até sua praça preferida, queria se sentar no seu banco preferido e apreciar a vista. O "Eu vou matar vocês dois!" mal assustou o casal sentado no banco. Mais tarde, o quarto foi transformado num imenso cinzeiro e depósito de garrafas pequenas e vazias como Lúcia.
   Estava sendo transferida a um presídio para aguardar o julgamento, o último andar do prédio fazia o cadastro das fichas criminais. Lúcia rabiscou alguma coisa na mão enquanto preenchia a ficha com seus dados. Os papéis quase voaram para fora da prancheta quando o vento soprou forte da janela. Olhou para o guarda que a acompanhava e, em plena lucidez, entendeu a que tudo culminava.
   "Vocês podem ver... Nada é importante. Nada mais é importante para mim.". O guarda olhou para cima, pensou no que poderia significar. Não precisou fazer muito esforço. Lúcia correu com todas as forças em direção à janela, conseguiu quebrar o vidro e pular.
   Na mão esquerda, estavam rabiscadas algumas palavras. "Sei que apesar de tudo o vento ainda sopra forte".

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Nota: recomendo a versão interpretada por Emilie Autumn de Bohemian Rhapsody porque em sua versão, ela une a ópera ao desconfortável, representando bem a bagunça nos pensamentos de Lúcia. Apesar do instrumental menos impactante que a versão original, Emilie Autumn sabe oscilar seu canto entre o esôfago e a garganta com harmonia.


quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O capitão e o corvo

Perdi os miolos
Entre os extremos, subjetivos,
Pois, na falta de qualquer coisa
        [que não concebo
E faz teu pensamento recorrer
        [a mim,
Recorro a meus inconscientes
        [nocivos
Tentando sentir tua presença
Com a necromancia dos vivos.

Entre o ser e o não ser
Já não indago essa dor índigo,
Pois sou e não sou
E escrevo agora a poesia
Ligeiramente tardia
Que agora flui de meus
        [umbrais,
E se inexistem tempo e
        [distância,
Quem diria nunca mais?

Dessas coisas que o corvo
        [grita
E não dá para saber
Se é demônio dele ou
        [inocência,
Seria melhor apagar o anil
Brincando com as palavras,
Pois é verdade que sou infantil.

Vamos brincar de dicotomia,
Posso virar xiita do Maiakovski
Pra gente fazer de pé de guerra
E seremos poesia
Nesse miolo inconciliável
Incomodando o racional.

Capitão ou demônio ou
        [pássaro azul,
Entre ser ou não ser,
Os dois,
Entre ter ou não ter,
Depois,
Entre o revolucionário e o
        [homofóbico
A poesia incomoda os
        [dogmas.

Capitão ou demônio ou
        [pássaro azul,
Entre escolher
Lado A ou lado B,
Teu silêncio é poesia.

Parece faltar algo que não concebo quando tudo a ti deveria ser pleno.