segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Bohemian Rhapsody

   O display do rádio relógio digital parecia um borrão de luz, dando presença - e não vida - ao quarto escuro. Lúcia fechou os olhos, esfregando-os, bocejou e abriu os olhos novamente. O horário que os pontos de luz verde marcavam seria doloroso se Lúcia tivesse a certeza de estar consciente o suficiente para se importar com a hora da madrugada em que o sono foi interrompido.
   Já recuperando a despertude, uma mistura de náusea e pânico fez fraquejarem o quadril, a virilha e o estômago, cada um destes a seu modo indefinido entre o bom e o ruim jeito de arrepiar, ao farejar o cheiro azedo do álcool que amanhecia raso nos fundos das garrafas espalhadas misturado ao cheiro forte do cinzeiro molhado. À medida que Lúcia enxergava os dejetos que compunham a morbidez do quarto, seu cérebro recriava, segundo a segundo, as cenas do episódio ocorrido horas antes, no início da noite.
   Bebeu os quatro dedos de líquido restantes à garrafa de vodka e deixou que os demônios do medo, da dúvida, da raiva e, principalmente o da coragem - o mais perverso e destrutivo de todos - tomassem sua psiquê. O "Eu vou matar vocês dois!" proferido horas atrás parecia, agora, mais que uma simples exclamação de raiva e desapontamento, um atestado do destino cru, em cuja inevitabilidade a distorção mental causada pelo álcool fazia que Lúcia cresse com convicção.
   Foi com a convicção de não estar dormindo nem acordada que o ímpeto da vingança levantou seu corpo da cama e cambaleou-o até a porta que fazia fronteira com o frio da madrugada.
   O vento soprava incansável e incessantemente como o fluxo da consciência que beirava entre o semiconsciente e o inconsciente alcoólico na cabeça de Lúcia, que perguntava ao próprio discernimento se o vento vinha para atestar mudança ou sabedoria. E como todas as outras vezes em que o caos indefinia o que pensar, assumiu como certas as duas possibilidades,
   Os tropeções não a impediram de chegar ao endereço tão visitado anteriormente, casa de tantas lembranças que pareciam pertencentes a uma vida que não à sua, pois a vida nunca lhe teve simpatia. Passou fácil pelo porteiro que, inocente das mudanças que o vento trouxe, a chamou pelo nome e disse bom dia. Lúcia passava com o rosto virado para o lado para que ninguém visse a cara de bêbada. Tocou a campainha decidida. Estava nojenta, fedia, tinha vontade de vomitar. Os olhos estavam inchados. Sabia que em algum momento seus pensamentos culminariam ao delírio. Já não era a mesma pessoa, sentia-se morta. O corpo servia apenas para fazer o que deveria ser feito. Estava mais do que decidida, seriam os dois e depois ela.
   De dentro do apartamento, a voz de uma mulher vulgar e de espírito nojento anunciou "Amor, eu vou atender à campainha!". A voz ridícula despertou a colossalidade do demônio da coragem, que já tinha uma mão no gatilho e aprontou-se a gritar "Sua vadia!" no momento em que os cinco tiros empurravam para longe a vida da bela moça loira que vertia em sangue por abrir a porta.
   Lúcia deu cinco passos para a frente, pisando sobre o corpo-capacho no passo número um. Sabia bem o caminho para o quarto. Ele tinha os olhos caramelo bem arregalados e não se movia, já olhava fixado em algum ponto para além da porta do aposento quando o revólver entrou no quarto seguido de Lúcia. O demônio da coragem parecia não existir no momento em que ela o viu fraquejar. Queria pegá-lo no colo e dizer que tudo ficaria bem. Tarde demais, dizia o demônio. E você é a próxima. Mas a mente de Lúcia abriu espaço para o demônio do medo (des)controlar sua mão, que já começava a tremer. E a mulher já havia caído desmaiada antes dele terminar de pronunciar seu nome. E antes do desmaio, nunca havia existido a certeza de estar fora do universo onírico.
   "Você tem direito a uma ligação". Lúcia levantou o olhar. Estava numa sala mal iluminada, apenas quatro paredes, uma escrivaninha, um aparelho de telefone, duas cadeiras e uma porta cheia de trancas. Nada com que distrair o olhar. A policial apontou o olhar para o telefone e Lúcia discou o número da mãe. A velha não atendeu. Lúcia prestou atenção minuciosa à voz confortável da mãe na mensagem da caixa postal. "Oi, sou eu! Devo estar ocupada e não posso atender, mas você pode deixar uma mensagem para mim assim que o telefone fizer 'piiii'!". Um nó na garganta formou-se e rapidamente desmanchou nas lágrimas que interrompiam o recado à caixa da mãe.
   Explicou tudo de que lembrava. A sensação de ter matado uma mulher a fez refletir sobre o quão cedo tinha jogado a própria vida fora. Apertou o coração imaginar que a mãe choraria ao ouvir o recado. Foi difícil imaginar a mãe tendo que seguir a vida e agradeceu à secretária eletrônica por não ter que falar com ela. Ainda sentia vestígio da embriaguez - nenhum relógio na sala mostrava quanto tempo havia passado - e percebia o delírio se aproximando quando lembrou de pedir que a mãe deixasse aos familiares e amigos o recado de que ela os ama. E o tempo da ligação acabou quando Lúcia se deu conta de que se nunca tivesse nascido, nada teria acontecido.
   Lúcia foi trancada na sala e deitou-se em um canto, no chão. Os quatro demônios a recebiam na suprema corte da culpa. E a condenavam. Lúcia tentava fugir, e como um coro maldito, os demônios a impediam até mesmo de completar suas falas. E o segundo período de sono foi mais perturbador que o primeiro. Estava cansada de ter que suportar.
   Não foi do dia para a noite que a sanidade transformou-se em inquietude em cada arrepio que a fraquejava enquanto aguardava insone por um sinal de saudade. Mas não. Já fazia um mês que ele a havia abandonado para ficar com a mulher loira e bonita. Lúcia foi mais que descartada, simplesmente foi apagada como se nunca tivesse existido. Foi amada e deixada aos cães da morte. E, antigo companheiro, o demônio da saudade a fazia sentar no sofá e encarar o telefone por horas, esperando uma ligação preocupada, um sinal de arrependimento, mas nada. Cansou de contar as vezes em que atendeu o telefone e baixou o sorriso para os moços do telemarketing.
   A boemia foi consequente. Fumava o cigarro que tinha gosto de beijo. Bebia qualquer coisa. Parava para morrer cada vez mais nas músicas tristes que preenchiam os lugares vazios. Caminhava pelos lugares necromânticos que ressuscitavam lembranças dele. E no início da noite do assassinato, caminhava até sua praça preferida, queria se sentar no seu banco preferido e apreciar a vista. O "Eu vou matar vocês dois!" mal assustou o casal sentado no banco. Mais tarde, o quarto foi transformado num imenso cinzeiro e depósito de garrafas pequenas e vazias como Lúcia.
   Estava sendo transferida a um presídio para aguardar o julgamento, o último andar do prédio fazia o cadastro das fichas criminais. Lúcia rabiscou alguma coisa na mão enquanto preenchia a ficha com seus dados. Os papéis quase voaram para fora da prancheta quando o vento soprou forte da janela. Olhou para o guarda que a acompanhava e, em plena lucidez, entendeu a que tudo culminava.
   "Vocês podem ver... Nada é importante. Nada mais é importante para mim.". O guarda olhou para cima, pensou no que poderia significar. Não precisou fazer muito esforço. Lúcia correu com todas as forças em direção à janela, conseguiu quebrar o vidro e pular.
   Na mão esquerda, estavam rabiscadas algumas palavras. "Sei que apesar de tudo o vento ainda sopra forte".

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Nota: recomendo a versão interpretada por Emilie Autumn de Bohemian Rhapsody porque em sua versão, ela une a ópera ao desconfortável, representando bem a bagunça nos pensamentos de Lúcia. Apesar do instrumental menos impactante que a versão original, Emilie Autumn sabe oscilar seu canto entre o esôfago e a garganta com harmonia.


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