sábado, 16 de janeiro de 2016

Metaformose inartificial

A mãe não morreu,
Os olhos se abrem delineados
Como todos os olhos;
Não é fraca,
Ossos quarentas de ex atleta
Aguardando a osteoporose;
Não é rejeitada,
O ventre,
Pela barriga lipada
E a virilha raspada
Não se cansa de parir;
Suas crianças mimadas
Fazem volume
Ao mundo
E não dizem nada,
Criam movimento
Entre uma rua e outra,
São novas mães
Delineadas,
Atléticas,
Comidas,
Lipadas,
Raspadas,
Cruéis
Ao esnobarem o que conseguem
Com seus documentos padrão,
Mimadas.

Tudo foi sempre assim
E funcionou,
Felizes
Como os filmes artificiais,
E comerciais de margarina
                    [artificiais,
E seus corpos artificiais,
E a invenção de tecnologia
                    [controladora da
                    felicidade
Como tamanhos de roupas
E tamanhos de pênis
E espelhos
E tons de cabelo normais
E sabonetes para espinhas
E delineadores
E academias
E lipoaspirações
E o sexo qualquer jeito e agradaça,
(Você é desejável)
E depilações
E a reprodução
E a comparação
Entre bilhões e bilhões de pessoas
Tentando ser iguais.

As borboletas mecânicas
Têm cor,
Têm forma,
Têm mercado,
Têm embalagem,
Têm concorrência,
Têm função
De produzir mais,
Satisfazer os financiadores,
De parir
Mais e mais
Borboletas mecânicas
Instruídas
A rejeitar o que não servir
Ao controle de qualidade.

Nos murais da vergonha,
Do dejeto,
Do obscuro,
Da violência
Vivem, órfãs,
Todas com as mães vivas
(E delineadas,
E depiladas),
Escondidas da vergonha,
Chorando nos banheiros,
Nas valetas,
Nos bancos desocupados
Em meio ao volume
De borboletas mecânicas,
Sós em meio ao volume,
Em seus casulos, recolhidas,
As filhas tortas
De olhos que não são delineados,
Porque borram;
De corpos não padronizados,
Porque são suficientes;
Não rejeitadas,
Mas inocentes;
De barrigas não lipadas,
Em formas lindas
E virilhas não raspadas
Porque têm alergia.

As borboletas não automatizadas
Circulam
Sem rota que não a liberdade
Onde não são incômodo
Às rotas de massas de asas
                    [mecânicas,
Ocupam os lugares vazios de fora
Aumentam os lugares vazios de
                    [dentro
Vez ou outra com suas asas de seda
Mutiladas
Multi escaras,
Ou casulos violados
Ao bater sem querer
Com as asas em roupas que não
                    [servem,
Com o corpo vendido a
                    [consumidores de
                     borboletas mecânicas,
E em cabelos perfeitos,
E em rostos lisos,
E em olhares delineados,
E em corpos malhados,
E barrigas lipadas,
E predadores sedentos,
E virilhas lisas,
E o medo
De serem as últimas da espécie
Entre a solidão do abandono
Das mães vivas e mecânicas
E a necesssidade de compreender
E absorver
Toda a informação,
Aceitar a rejeição
Do controle de qualidade,
E a precocidade
Da pressão
De deixar o casulo
E viver fugindo
E escondendo o rosto dos
                    [predadores
Para não sentir dor além da do fardo
De viver insolicitamente
À margem do volume.

As borboletas não automatizadas
Não têm cor,
São negras, amarelas, vermelhas e
                    [azuis;
Não têm forma,
Algumas têm asas largas,
Outras, finas,
Outras, pontudas;
Não têm mercado
Senão a liberdade;
Não têm embalagem,
Pois voam nuas;
Não têm concorrência,
E sim amizade;
Não tem propósito
Nem garantia
E por isso insistem em querer
                    [expirar cedo.

As borboletas não automatizadas
São formosas
E se conectam umas
Com a dor das outras,
As borboletas mecânicas
São uma mentira
Contada a toda lagarta.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Persephone

I'm sorry
For loving you,
My heart is a never landing boat
I'm a neverlanding dreamer,
Your heart was an ever warming
                    [coat
And I love being cold.

I'm sorry
For knowing the taste
Of fear
Of this game, unfair,
For knowing the taste of despair,
For being a freak.
You'll never know
The risk it all takes.

I'm broken,
I hope someday you'll understand
I can't let my love flow,
I can't be the one to break you,
Can never be the one to show,
How deep,
How dirty,
How scary,
How dead I've been.

There's no life after love,
You shouldn't let me kill you
Just because I'm dead.
No Persephone I will ever have.
I can never land on beautiful places
For they're only beautiful alone.

I'm sorry,
I should never have kissed him,
But I have a never landing heart,
An ever hiding, running, ruining
                    [boat,
Freak me,
I should never have lead it
To a hurt or getting hurt war.
I'm sorry, it hurts me too
The thought
Of hurting you.

Leave me
Before you know
My monsters,
My demons,
Just leave me
So I can never let you down.

domingo, 10 de janeiro de 2016

"Mas sim, senhor!"

Sou espectadora
Da chuva de verão,
Toda a chuva a descer:
Eu também quero chover
Quando além da chuva tudo
                    [escorre.
Flui a energia de dentro,
Sempre pra fora, até a vida,
Tudo morre.

Um a um,
Entre as flores:
Meus pilares,
Meus amores.

O velho tinha medo de morrer
E deixar a gente no desespero
E só,
Mais nada,
Conversar pra quê?

(Há um lugar que eu odeio,
Aonde tudo o que foi
Nunca mais voltou,
Porque ele veio do submundo
Sem a alma,
Sem a luz,
Há um lugar que eu odeio,
Aonde tudo o que vai
Nunca mais voltará)

O velho era ríspido
Ao amanhecer,
Ah, era, "sim senhor",
Mas o calor
Até a aurora
Derretia a manteiga de cima da
                    [mesa
E ele se preocupava com a saúde do
                    [cachorro.
O velho era sério e foi doce.

O velho era velho e foi velho,
Mais velho é o meu coração
Onde não passa nada
Depois da morte,
Não, senhor.

sábado, 2 de janeiro de 2016

O pombal ferroviário

   As canelas finíssimas bambeavam ao desviar das pedras soltas de cimento para que a lama, fruto da tempestade da última noite, não respingasse por toda a perna, a saia ligeiramente curta ou os sapatos. O bebê agarrado ao colo berrava faminto. Ignácia trocou o braço em que apoiava a criança junto ao corpo para que gritasse alto no outro ouvido.
   O misto do choro e do barulho do vazio lembrava-a que há semanas o solado dos tamancos deixara de fazer "plec-plec" para fora, ressoando nas ruas, e começara a compassear a carne ardente para dentro do couro. O reflexo da luz pouca nas pedras lisas da ruela, as coloridas, decadentes e sujas construções rodoviárias do milênio passado e os postes escorrendo ferrugem ouviam, com os ouvidos que não tinham, o barulho que fazia o silêncio. Ignácia e os pontos de luz rápida verdes que antecipavam o verão tinham a pouca cabeça atormentada pelos berros, a de Ignácia mais do que pelos berros.
   Uma poça d'água teve a imagem que refletia da mística lua cheia e amarela velada por poucas nuvens borrada e trêmula quando Ignácia pisou sobre a água sem querer. Mas tudo fora de sua cabeça era tão tranquilo que não demorou para que a superfície da água voltasse a aparentar um liso tão perfeito quanto vidro sólido.
   Ignácia tinha os membros finos e desnutridos como os de quem poderia estar andando há dias procurando um lugar conhecido. E construía-se logo perante seus olhos castanhos camuflados entre a noite e a pele o beco confortável como a distância da cansativa vida anterior. A madrugada, o sereno e a lua abençoavam a vitória de deparar-se com uma casinha que, se não fosse pela pintura alaranjada, suja e descascando, alguns vasos de plantas murchas e um pouco de musgo escorrendo pelas paredes, seria exatamente igual a todas as outras. Tirou da mochila azul pastel que trazia nas costas uma mamadeira amarela com um quarto da capacidade preenchida por leite e silenciou todo o desespero que martelava de sua cabeça sem mesmo tocar os ouvidos.
   Enquanto o filho mergulhava no sono, mergulhou os olhos nas peças de formatos irregulares de cerâmica carmim desgastada que cobriam o chão de cimento -  peças que já haviam mudado de tamanho e cor, já haviam dançado e voltado a dormir nunca deixando de ser os exatos mesmos cacos de cerâmica. Nenhuma delas nunca foi confortável, todas gelavam a bunda e a muretinha com cimento texturizado que marcava o caminho da entrada do casebre e isolava a escadinha de três degraus doía nos primeiros segundos em que se reclinava a cabeça para apoiá-la nela. Fechou os olhos e misturou o próprio corpo ao silêncio para retornar a ser parte da paisagem.
   O apito e a barulheira da maquinaria do trem não rompia o silêncio que não existira no beco. Todas as portas das casas estavam abertas e tinham os caixilhos de madeira ruim e podre despedaçados em algumas partes, nenhum vidro das janelas permanecera intacto. Por dentro das janelas, pares curiosos de olhos faziam-se plateia da algazarra na ruela: homens mijavam nas paredes pixadas, pessoas gritavam ao finalmente perceber os cacos de garrafas que deslisavam por dentro da pele de seus pés descalços, pombos bicavam restos de sujeira entre os paralelepípedos da rua, pessoas jogavam os corpos nas entradas das casas, assim como fez Ignácia e gemiam baixo o pequeno segundo de conforto que unia todos os zumbis às construções abandonadas e ao único par de olhos consciente, que observou a volta de Ignácia e prestava toda a atenção no modo como dormia.
   Aquele par de olhos se escondia na janela mais distante dos trilhos do trem, na única janela de onde nunca se pôde ver mais do que um par de olhos. E pertencia a uma mulher grisalha que escondia o corpo e os sentimentos sob uma capa de cetim preto que as traças comiam aos poucos. Ela tinha os olhos mais altos de todo o beco e graças à capa que reluzia sob a mística lua cheia nunca precisou pedir a ninguém que mantivesse o olhar baixo. Ela estava profundamente interessada na reação da sua vadia de teste, imaginando desde quando Ignácia estava assim, já que demorou a voltar ao beco. Estúpido escolher justo ela, que sempre começava só quando já tivesse conseguido o dinheiro pro próximo mês.
   Ignácia abriu os olhos menos de duas horas depois de fechá-los. Estava certa de ter ouvido o maldito choro do bebê alto, mas ele não estava ali onde ela o havia deitado. "ONDE ESTÁ O MEU FILHO??? EU SEI QUE TEM ALGUÉM AÍ, ONDE VOCÊ ESTÁ? EU QUERO O MEU FILHO!", gritou, com toda a força que a desnutrição permitia e todo o volume que não doía na garganta arranhada de fumaça tóxica. Um homem saiu de uma casa e correu até o meio da ruela vazia, olhou para Ignácia e continuou a andar em direção ao trilho do trem.
   Uma mulher que estava caída ao lado de onde Inácia esteve riu e soltou um embaralhado de palavras incógnitas enquanto as pessoas abriam espaço, assustadas com o modo que Ignácia corria pela ruela como se estivesse vazia e não houvesse ninguém ao redor.
   O homem parou a um metro do trilho e abriu a boca para falar algo enquanto esticava um estilete queimado e enferrujado na direção de Ignácia, que parou de correr para não ser ferida e tentar negociar. As palavras de negociação não foram ouvidas porque assim como não enxergava as pessoas, Ignácia não ouvia suas vozes gritando em pânico, nem enxergava nem ouvia o trem se aproximando sem tempo de frear.
   Como os pombos deformados ainda brigavam para bicar algum resto de comida ignorando a sujeira do chão, quando o trem foi embora, um bando de zumbis semiconscientes ignorava o sangue que molhava o dinheiro do próximo mês.
   Com o novo dinheiro sujo de vermelho em uma mão e uma colher torta, um cara foi até a mulher que assistira a tudo sob uma capa de cetim puxando a conversa. "Cê sabe que ela tava gritando que alguém pego o filho dela, né, quem foi?". A mulher pegou o dinheiro e em troca deu um pacote da coisa nova que tinha acabado de testar. "Aquela vadia nunca teve um filho".

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