sábado, 2 de janeiro de 2016

O pombal ferroviário

   As canelas finíssimas bambeavam ao desviar das pedras soltas de cimento para que a lama, fruto da tempestade da última noite, não respingasse por toda a perna, a saia ligeiramente curta ou os sapatos. O bebê agarrado ao colo berrava faminto. Ignácia trocou o braço em que apoiava a criança junto ao corpo para que gritasse alto no outro ouvido.
   O misto do choro e do barulho do vazio lembrava-a que há semanas o solado dos tamancos deixara de fazer "plec-plec" para fora, ressoando nas ruas, e começara a compassear a carne ardente para dentro do couro. O reflexo da luz pouca nas pedras lisas da ruela, as coloridas, decadentes e sujas construções rodoviárias do milênio passado e os postes escorrendo ferrugem ouviam, com os ouvidos que não tinham, o barulho que fazia o silêncio. Ignácia e os pontos de luz rápida verdes que antecipavam o verão tinham a pouca cabeça atormentada pelos berros, a de Ignácia mais do que pelos berros.
   Uma poça d'água teve a imagem que refletia da mística lua cheia e amarela velada por poucas nuvens borrada e trêmula quando Ignácia pisou sobre a água sem querer. Mas tudo fora de sua cabeça era tão tranquilo que não demorou para que a superfície da água voltasse a aparentar um liso tão perfeito quanto vidro sólido.
   Ignácia tinha os membros finos e desnutridos como os de quem poderia estar andando há dias procurando um lugar conhecido. E construía-se logo perante seus olhos castanhos camuflados entre a noite e a pele o beco confortável como a distância da cansativa vida anterior. A madrugada, o sereno e a lua abençoavam a vitória de deparar-se com uma casinha que, se não fosse pela pintura alaranjada, suja e descascando, alguns vasos de plantas murchas e um pouco de musgo escorrendo pelas paredes, seria exatamente igual a todas as outras. Tirou da mochila azul pastel que trazia nas costas uma mamadeira amarela com um quarto da capacidade preenchida por leite e silenciou todo o desespero que martelava de sua cabeça sem mesmo tocar os ouvidos.
   Enquanto o filho mergulhava no sono, mergulhou os olhos nas peças de formatos irregulares de cerâmica carmim desgastada que cobriam o chão de cimento -  peças que já haviam mudado de tamanho e cor, já haviam dançado e voltado a dormir nunca deixando de ser os exatos mesmos cacos de cerâmica. Nenhuma delas nunca foi confortável, todas gelavam a bunda e a muretinha com cimento texturizado que marcava o caminho da entrada do casebre e isolava a escadinha de três degraus doía nos primeiros segundos em que se reclinava a cabeça para apoiá-la nela. Fechou os olhos e misturou o próprio corpo ao silêncio para retornar a ser parte da paisagem.
   O apito e a barulheira da maquinaria do trem não rompia o silêncio que não existira no beco. Todas as portas das casas estavam abertas e tinham os caixilhos de madeira ruim e podre despedaçados em algumas partes, nenhum vidro das janelas permanecera intacto. Por dentro das janelas, pares curiosos de olhos faziam-se plateia da algazarra na ruela: homens mijavam nas paredes pixadas, pessoas gritavam ao finalmente perceber os cacos de garrafas que deslisavam por dentro da pele de seus pés descalços, pombos bicavam restos de sujeira entre os paralelepípedos da rua, pessoas jogavam os corpos nas entradas das casas, assim como fez Ignácia e gemiam baixo o pequeno segundo de conforto que unia todos os zumbis às construções abandonadas e ao único par de olhos consciente, que observou a volta de Ignácia e prestava toda a atenção no modo como dormia.
   Aquele par de olhos se escondia na janela mais distante dos trilhos do trem, na única janela de onde nunca se pôde ver mais do que um par de olhos. E pertencia a uma mulher grisalha que escondia o corpo e os sentimentos sob uma capa de cetim preto que as traças comiam aos poucos. Ela tinha os olhos mais altos de todo o beco e graças à capa que reluzia sob a mística lua cheia nunca precisou pedir a ninguém que mantivesse o olhar baixo. Ela estava profundamente interessada na reação da sua vadia de teste, imaginando desde quando Ignácia estava assim, já que demorou a voltar ao beco. Estúpido escolher justo ela, que sempre começava só quando já tivesse conseguido o dinheiro pro próximo mês.
   Ignácia abriu os olhos menos de duas horas depois de fechá-los. Estava certa de ter ouvido o maldito choro do bebê alto, mas ele não estava ali onde ela o havia deitado. "ONDE ESTÁ O MEU FILHO??? EU SEI QUE TEM ALGUÉM AÍ, ONDE VOCÊ ESTÁ? EU QUERO O MEU FILHO!", gritou, com toda a força que a desnutrição permitia e todo o volume que não doía na garganta arranhada de fumaça tóxica. Um homem saiu de uma casa e correu até o meio da ruela vazia, olhou para Ignácia e continuou a andar em direção ao trilho do trem.
   Uma mulher que estava caída ao lado de onde Inácia esteve riu e soltou um embaralhado de palavras incógnitas enquanto as pessoas abriam espaço, assustadas com o modo que Ignácia corria pela ruela como se estivesse vazia e não houvesse ninguém ao redor.
   O homem parou a um metro do trilho e abriu a boca para falar algo enquanto esticava um estilete queimado e enferrujado na direção de Ignácia, que parou de correr para não ser ferida e tentar negociar. As palavras de negociação não foram ouvidas porque assim como não enxergava as pessoas, Ignácia não ouvia suas vozes gritando em pânico, nem enxergava nem ouvia o trem se aproximando sem tempo de frear.
   Como os pombos deformados ainda brigavam para bicar algum resto de comida ignorando a sujeira do chão, quando o trem foi embora, um bando de zumbis semiconscientes ignorava o sangue que molhava o dinheiro do próximo mês.
   Com o novo dinheiro sujo de vermelho em uma mão e uma colher torta, um cara foi até a mulher que assistira a tudo sob uma capa de cetim puxando a conversa. "Cê sabe que ela tava gritando que alguém pego o filho dela, né, quem foi?". A mulher pegou o dinheiro e em troca deu um pacote da coisa nova que tinha acabado de testar. "Aquela vadia nunca teve um filho".

https://www.youtube.com/watch?v=ZsLvrBwPrA0

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