domingo, 21 de outubro de 2018

Kadath

Como se não fosse parte de mim,
O olhar,
Recorrente e saudoso,
Do espelho,
Procura em minhas formas e lembranças,
Em minhas mudanças habituais,
Algo que talvez fosse parte de mim
E deixei para trás.

Como se houvesse algo a mais
Entre Safo e o espelho,
Entre a melancolia e o corvo,
Portugal, o mar, o capitão,
Uma beleza abandonada
Pela incompreensão,
Deixada por própria vontade
À deriva
Da futilidade
E já não há mais.

Como se eu não tivesse sonhado
Uma paixão coração despido,
O espelho me julga
Em duplicado sentido,
Como se não fosse mais simples
Expressar direto o que penso a mais,
Tenho pesadelos
Demais.

Como se não fosse belo
Abandonar a dor
E olhar para trás.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Colt

It's no one's fault
The passion we fight
For the cold of the unguilty
Great coat of dark beauty
We call a night.

Not also my fault
I catch myself sneezing
For tonight, it's freezing,
And absolutely no doubt
Would hide your arms' from
And the memory
You're warm.

I'll miss every second
And third
And any trace
I'd see everywhere
Resembling your face.
It's no one's fault
The night's cold and cruel,
But I wish I'm lucky
To dream of you

sábado, 30 de junho de 2018

Poema sem fragrância

Como alguém que descreve a fragrância de um perfume sem nome,
descrevo
o perfume
sem nome, nem fragrância
dos traços que renderizam
ou apenas desenham
o que dá pra chamar de
um traço discreto;
de realidade;
de afeto.

Como um perfume sem fragrância,
o silêncio se cristaliza
como a falta de pensamento,
desliza
sobre o conforto do amor,
sobre um ombro,
em direção ao calor.

Como a minha poesia não tem fragrância,
aprecio, em versos crus,
o silêncio de um bom perfume.

Como um perfume sem nome,
borrifar palavras sem cheiro,
por mais que me exaltem
ou que as palavras me faltem,
não pesa o papel
nem o torna vazio.

Como um perfume sem nome,
é o silêncio de mãos quentes
que cessa o frio.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Retalhos

I.

 - Deusa!  - a voz ofegante de Ignácia ecoou pelo templo. – Eu imploro! Pelas montanhas, eu imploro que... – e a compreensão imediata da deusa fez morrer a súplica antes que se terminasse de pronunciar o impronunciável. Os cabelos sem cor de Ignácia estavam se bagunçando devido à agitação. Corria em direção ao altar com o desespero que tem a pessoa cuja vida só tem sentido enquanto corre.
   A deusa aguardava aquele grito há tempos, e deixou os lábios se expandirem em um sorriso direcionado ao nada que apenas os deuses mais encolerados pela solidão eram capazes de enxergar refletido em qualquer espelho d’água. O sorriso reluzia, radiava toda a expressão que poderia ecoar em um grito se a traição da deusa para com o Universo não tivesse motivado o castigo da mudez eterna.
   Recebia a convidada com suas costas divinas, uma vez que olhava fundo para aquela quase imperceptível bacia com uma lâmina de água que jazia atrás do altar no chão do fundo do templo. A deusa se divertia ao ver que em seu enorme templo as pessoas desesperadas alimentavam o caos com caos, e quanto mais ele se consumia, mais ele aumentava.
   Ignácia havia notado as dezenas de borrões de velocidade por entre o espaço que corriam entre as paredes do templo – e, depois, identificou-os como almas que se perdiam antes mesmo de encontrar o olhar não tão misericordioso da deusa – e compreendeu que não poderia desviar o foco e os olhos da figura divina enquanto o pânico dava movimento às suas pernas.
   Apesar de carregar em uma das mãos um fio de costura velho, partido e descamado e na outra mão uma agulha que brilhava refletindo a luz lunar que caía sobre o templo sem teto, o cabelo, as vestes e até mesmo seus tecidos corporais estavam puíndo sob o efeito espaço-temporal das traças espirituais que por hábito se chamavam horas. Tropeçou e continuou correndo, e um pouco da vida presa ao corpo se esfarelou do peito e caiu ao chão com o impacto dos pés na irregularidade morfológica do chão.
   Os antebraços eram visivelmente os tecidos mais desgastados. Haviam marcas de cortes profundos cuja origem Ignácia desconhecia, mas sabia que era ligada ao fio. Os tecidos cutâneo e adiposo dos braços eram picotados e descamavam a ponto de quase se desprender das juntas das mãos. Ignácia olhava para a agulha temendo que a mão que a segurava caísse e ela nunca mais pudesse se guiar.
   Sabia que o fio era a parte mais importante da sua vinda ao templo, mas não conseguia se lembrar do porquê. Associava o fio a um par de botões de camisa, um parafuso solto, uma porca perdida e uma renca de sentimentos que sabia que existiam, apesar de não entender bem quais eram as sensações devido ao limbo na matéria entre tempo e espaço que a separava da última vez em que tais sensações tocaram seu tecido cardíaco, que agora puía e a cada pisada forte tinha fios a menos.
   Reconhecia a agulha. Era mais familiar que importante, mas sabia porque a agulha estava lá. Desde a primeira lembrança que Ignácia tinha de existir, a agulha estava lá, na mão direita, direcionando a criação e guiando a mão para que fizesse a coesão de tudo o que era esfarrapado.
   A deusa tinha cabelos longos expressos em milhares de cores que Ignácia sequer sabia nomear. Alguns daqueles tons irreconhecíveis nas madeixas da deusa a assustavam, outros a entristeciam, outros a alegravam, e haviam outros sobre os quais a menina não se atrevia a focar o olhar por muito tempo.
   Ainda sorrindo, a divina matriarca regente do templo viu, em alguma parte do nada refletido pela água, o fio que a mortal carregava na mão esquerda, e este, ao receber a graça do olhar, se encheu de luz. A iluminação que habitava na deusa diminuía à medida que o brilho do fio aumentava; a sombra tomava aos poucos parte da imagem da deusa; o sorriso cedia. Havia então recordado o motivo da vistita.
   Enquanto o sorriso ainda minguava, e antes de de dar as boas vindas a Ignácia, a deusa deixou cair sobre o  espelho d’água uma lágrima, e um dos fios de um dos milhares de tons azuis em seu cabelo começou a levitar. Ignácia sentia a força quase magnética com que o cabelo da deusa atraía o pedaço velho que trazia na sua mão esquerda, e partindo com velocidade da mão e da cabeça, o fios se alcançaram longe formando um nó.
   Havia se estabelecido ali a conexão que formava a linha de raciocínio e a última esperança que Ignácia tinha de recuperar a informação e todas as sensações ligadas ao pedaço de fio.
   A deusa queria dizer algo, e a dor do não dizer presente no choque da gotícula com a água da bacia estrondou, colocando ordem no barulho antes caótico. As pessoas que corriam de um lado para o outro do templo tomaram a consciência de bater os pés nos mesmos compassos, e como a fala é nada mais que um vibrar das pregas vocais acompanhado de uma batucada da língua na cavidade bucal, o canto da deusa se fez da vibração do desespero e as batidas dos pés. Ignácia não deixou de perceber que seus pés eram os que ditavam a melodia.
   Os olhos da deusa se voltaram e penetraram fundo no olhar de Ignácia. O vazio não a afetava, pois já havia carregado o fio por terras mais vazias e áridas que aquelas. Todo o resto de luz que havia sobrado detrás do vazio dos olhos da deusa escapou e, por um momento, cegou Ignácia.
    O barulho dos pés batendo no chão, compreendeu Ignácia, a emoção da deusa que batia na água, e até mesmo a expressão luminosa eram a sinfonia que compunha seu melancólico canto mudo.
   Os cabelos curtos e sem cor de Ignácia cresciam e refletiam uma luz verde veneno. A menina reconhecia o passado tomando conta do instante em que o primeiro verso da canção era entoado no silêncio.

II.

   O barulho das centenas de máquinas de costura reverberava pelo saguão no ritmo contínuo da escravidão. Entre a porta do galpão imundo e as costureiras, haviam três majestosos tronos vazios que davam as costas para a vida sincronizada das agulhas, na parte de trás do primeiro dos quais havia a inscrição IX, do segundo, X, e do terceiro, alguns vestígios ilegíveis de alguma inscrição que um dia já foi decifrável.
   A dona do trono de inscrição IX era uma criança que aparentava ser menos de um éon mais nova que Ignácia. Como uma criança que nunca se cansa de pedir para que os pais contem mil vezes a mesma história, a dona do trono IX passava os dias se divertindo a arrancar os próprios cabelos e entregá-los todos os dias às costureiras novas que chegavam ao galpão. As costureiras novas olhavam para ela com admiração e invejavam sua alegria, sonhavam um dia se divertir e reproduzir o mesmo olhar feliz que ela tinha ao entregar cada fio de cabelo.
   O trono X pertencia à gerente do galpão, que sempre passava de gabinete em gabinete levando sensações e sentimentos das mais variadas cores e texturas, bem como modelos de corte e roupas falhas ou puindo para as costureiras, que se aborreciam. Toda vez que aquela senhora passava por seus gabinetes, significava que o trabalho não tinha acabado e que surgiriam mais problemas.
   Enquanto algumas das costureiras realizavam seus trabalhos de maneira gloriosa e no peso certo, haviam outras que achavam que nunca conseguiriam costurar algo com um peso agradável, e chegavam a se lamentar. As costureiras que se queixavam de estar a muito tempo na fábrica recebiam algum tipo de anotação no caderno da gerente, mas a grande maioria delas não fazia sequer noção da quantidade de éons que passaram costurando, e apenas uma porcentagem quase nula delas se lembrava do que havia acontecido, de onde vieram e o que faziam antes de chegar à fábrica.
   Pouco se sabia da dona do terceiro trono. Algumas das costureiras diziam que era uma velhinha simpática que contava os éons sentada em seu trono, com quem sonhavam em conversar no momento em que terminassem o trabalho. Corriam boatos por todo o galpão de que ela era quem fazia a manutenção, e apenas quando uma máquina de costurar enguiçava ou quebrava era vista sorrateiramente indo até o gabinete onde a máquina se havia quebrado para consertá-la.
   Ignácia não era indiferente à existência dos tronos e suas donas, apenas costurava tranquila porque gostava de costurar. Sentia que poderia dar o peso certo e suficiente aos corpos que se vestiam. Havia vezes em que estava tão concentrada no trabalho que sequer notava a entrada da gerente para trazer mais tecidos, modelos de roupa para criar e, os preferidos de Ignácia, as roupas rasgadas e descosturadas para remendar. Parava apenas, em ocasiões muito raras, para firmar bem os elásticos que prendiam seus longos cabelos verdes em duas marias chiquinhas.
   Seu gabinete era bagunçado. Criativo, como preferia dizer. Centenas de retalhos se espalhavam desde a mesa da máquina até os manequins perto da parede do fundo da saleta. Os agulheiros, zíperes, botões, fitas métricas, rendas, babados e bordados ingleses eram separados em caixinhas suspendidas nas paredes, mas nem as separações impediam que botões e agulhas se misturassem naquele estúdio.
   As roupas que Ignácia terminava eram penduradas por cabides em cinco araras espremidas que é difícil de acreditar que conseguiram passar pela porta, e mais difícil ainda entender como couberam todas dentro do minúsculo gabinete.
   Os materiais eram dos tipos mais variados, embora ninguém entendesse ao certo qual era a origem de tudo o que entrava no galpão. Os mais variados tipos de sensações e sentimentos passavam diariamente pelo gabinete de Ignácia e saíam sem que a menina sequer se desse conta.
   Apenas os fios eram únicos. Cada costureira mantinha guardado o seu pedaço com sua cor, e ele durava enquanto fosse necessário costurar. Ignácia guardava o pedaço de fio azul que recebera no primeiro dia enrolado em um novelo no bolso do peito do macacão. As outras costureiras usavam roupas mais modernas e bonitas, mas Ignácia preferia se sentir confortável em vestes práticas enquanto costurava.
   Estava lá desde muitos Éons atrás, mas não pareciam nada. Apesar de algumas das costureiras mais novas terem, ocasionalmente, se queixado de que o fio falhava ou não segurava a costura por muito tempo, Ignácia, uma das costureiras mais ocupadas, nunca teve problemas com o seu pedaço de fio.
   Não era o caso da vizinha da esquerda, cujo nome desconhecia, mas sempre ouvia as outras meninas chamando carinhosamente de “Pan”. O fio de Pan começara a falhar havia pouco tempo, coisa de menos de um éon. Ignácia descobriu isso quando ouviu um grito.
 - Tudo bem por aí? – perguntou, preoucupada. Os outros gabinetes eram uma abstração para Ignácia. Tinha uma relação tão íntima com o seu que, apesar de ter saído dele algumas vezes e passado por outras portas, nunca ousara entrar, nem sequer abrir a porta de qualquer outro. Por isso, parecia surreal ouvir um grito e ser bruscamente desconectada da concentração que tinha no trabalho, e principalmente era complicado lembrar que existiam outras centenas de pessoas costurando além dela.
 - Eu estou bem, é só essa porcaria de fio que fica travando a máquina e eu me assusto com a mesa toda que treme. Dá pra sentir ela tremendo daí?
 - Não. Só ouvi o grito – respondeu, com o tom de voz de quem varia entre um humor ranzinza, incomodada pela interrupção do trabalho, e um tom reflexivo, enquanto imaginava o que poderia fazer com que um fio começasse a falhar.
 - Me desculpe, não quis te atrapalhar – disse Pan, envergonhada.
   Depois desse breve diálogo, vez ou outra, Pan perguntava algo sobre algum corte ou ponto, e Ignácia respondia com um desenho que jogava por cima da parede falsa que separava um gabinete de outro. O mundo que antes, para Ignácia, era quase mudo, a não ser pelo ritmo das agulhas de todas as máquinas do galpão, Cada vez era mais invadido pelo diálogo, e cada éon que se passava fazia Ignácia crer que o silêncio nunca mais seria o mesmo.
   Éon após éon Ignácia ouvia as reclamações de mal estar, de cansaço e, principalmente, do fio de Pan que falhava. A senhora da cadeira X a havia visitado duas vezes em muito poucas traças-hora de diferença quando Pan se cansou de insistir em continuar costurando com o mesmo fio de sempre.
 - Vou andar até os tronos -, disse a Ignácia, - E vou pedir para a garota do IX um novo fio de cabelo. Ela tem de sobra e ainda se diverte distribuindo. -, explicou.
   Ignácia se empolgou com a possibilidade de alguém se aventurar por entre os gabinetes e conseguir um fio novo. Haveria a possibilidade de encontrar as costureiras novas transitando pra seus gabinetes. Ou então, encontrar a misteriosa senhora ocupante do terceiro trono, e descobrir como são consertadas as máquinas de costura.
 - Você vai encontrar o caminho de volta? – Perguntou, preocupada. Pan garantiu que sim. Deixou a máquina e a agulha que usava em costuras manuais sobre a mesa, levantou-se e saiu do gabinete. Ignácia pôde ouvir o barulho da porta abrir e fechar, e depois, foi deixada à companhia e aos cuidados do silêncio.
   Ignácia não sabia dizer se o silêncio reinou por traças ou éons até que Pan retornasse ao gabinete. Algo no tom de voz da colega havia mudado, ela começou a trabalhar com mais seriedade. Disse que tinha se perdido no caminho para os tronos, mas algo incomum que ocorreu em alguns corredores desertos perto da porta do saguão foi suficiente para que Pan retornasse.
 - Eu vi! Com os meus olhos eu vi a criança, a mulher e a velha caminhando juntas pelos corredores -, contou, - e descobri um jeito fascinante de continuar a costurar com esta linha sem que ela se trave! -, explicou. Mas em momento nenhum deu qualquer tipo de detalhe sobre como o faria.
   Os próximos éons também foram silenciosos. Quanto mais o silêncio assombrava Ignácia, mais escuro ficava seu fio, porém, ele funcionava sempre sem falhar, e alguma vez ou outra, quando o pavor vinha em retalhos maiores, o fio parecia fluir mais. O silêncio era interrompido apenas nos poucos momentos em que Pan entoava algum tipo de música mórbida, no fim da qual parava para cochichar “eu ouço a voz dela, ela fala comigo. Quer que eu trabalhe nele”.
   Nunca mais perguntou sobre modelos, nem mesmo sua máquina voltou a fazer barulho. Parecia costurar algo à mão. Apesar de preocupada, Ignácia a ignorou, e voltou a tentar se concentrar no trabalho.
   Não era fácil voltar a se acostumar com o silêncio depois que a vida se enchera de voz uma vez. A voz de Pan era uma voz invasiva, porém, gentil. Uma voz que incomodava com simpatia, e fazia, agora, um mal proporcional ao bem que fizera durante as conversas.
   Ignácia não gostava das melodias. Quando a vizinha começava a entoá-las, colocava mais força no pedal para que a máquina fizesse mais barulho. O pé doía, e às vezes fazia alguma costura torta por não conseguir acompanhar o ritmo da máquina.
   A qualidade das roupas ia piorando, mas o fio nunca sequer deu sinal de falha. Ignácia se surpreendia ao ver que saía do bolso do seu macacão acompanhando a velocidade da máquina. Tinha a plena convicção de que a qualquer momento a máquina poderia ceder à fúria, e quem sabe enguiçar, fazendo com que a velha do terceiro trono viesse para consertá-la e talvez conversasse um pouco para distrair sua cabeça.
   Mas a máquina parecia o coração do espírito jovem que perdurava pelos éons batendo à mercê de toda a vontade e toda a energia que emanava Ignácia. Se frustrava por não poder fazer nada para que a música cessasse. Um silencioso ímpeto de levantar da cadeira para destruir a máquina e a parede do gabinete e a fonte da música e correr veloz como a agulha da máquina de costura ao encontro da gerente. Mas não o fez. Canalizou toda aquela manta de retalhada de sensações vermelhas para o fio e cada vez mais rápido correu a agulha, e mais firmes e bem alinhadas ficavam as suas costuras.
   O ritmo apenas se tranquilizava quando, em alguns momentos, uma desconhecida sensação verde claro entrava em sua pilha de costura.
   Houve um dia em que todas as cores eram frias e a canção começou a se fazer audível em uma frequência insuportável invadindo o odioso silêncio que antes reinava com coração frio no gabinete de Ignácia. Aquelas eram as piores notas, pensou. O descuido no momento de susto do início da música derrubou, com direita a visita ao joelho durante o percurso, sua agulha de costura manual ao chão.
 - Ai! -, gritou. o tecido azul profundo de seu macacão mudou de cor. Agora, refletia uma frequência visual verde veneno, como era a cor de seus cabelos. Não notou a volta do silêncio. Por um momento, pesou em seu corpo aquela parte do tecido, e tudo o que podia sentir era verde.
   Verde o suficiente para que não notasse a tardia volta do silêncio, para que parasse de costurar por poucas traças, e para que não percebesse a aparição da gerente da fábrica, nem sequer percebesse quando ela pingou umas poucas gotas de um líquido transparente por cima da parte verde do tecido. O líquido ia desaparecendo à medida que o tecido voltava a ser azul, e Ignácia só voltou a ser consciente do que acontecia ao seu redor quando havia desaparecido por completo, e o azul do tecido de cima do joelho tinha um tom mais escuro e a aparência menos nova.
   Quando se deu conta de tudo à sua volta, percebeu alguma disritmia entre os compassos da melodia que tinha o coro das máquinas de costura trabalhando conjuntas, mesmo com o fim daquela canção insuportável de Pan. Se sentou, apesar de intrigada com o ritmo novo, pegou suas sensações e passou o fio na agulha da máquina para voltar a costurar.
   Apesar de em ritmos e frequencias variadas, a média costumeira do barulho que fazia uma máquina de costura era algo parecido com um tec-tec-tec infindável. Ignácia fez pressão com a ponta do pé no pedal da máquina, e o barulho se juntou ao coro, fazendo que a melodia parecesse, agora, um pouco menos desfamiliar.
   É claro, entendeu. Mesmo antes, enquanto a música de Pan a incomodava, a máquina que deveria emitir som de dentro do gabinete de Pan estava calada. Ignácia não concebia qualquer motivo plausível. Levantou-se da bancada, mais decidida do que faria do que incomodada pelo silêncio da máquina em seu próprio gabinete. Estava convencida a bater na porta do gabinete de sua amiga e pedir para quebrarem juntas, mais uma vez, o silêncio. Colocou um casaco de uma cor desconhecida, saiu do gabinete e trancou a porta.
   O corredor era o mesmo que havia visto em um punhado de situações. Sabia a direção, mas ainda assim andou devagar como se estivesse incerta não do local, e sim do motivo de fazer uma visita inesperada. A porta de Pan era como eram todas as portas de todos os outros gabinetes. Nenhum detalhe dava vida à cor bege, lisa e fria.
   Ignácia bateu na porta quatorze vezes. Nenhuma resposta veio do lado de dentro. Sabia que tinha disposição de Éons e Éons para ficar parada diante da porta. Mas o fio azul brilhava um pouco mais a cada vez que pensava em bater mais uma vez naquela porta.
 - PAN! -, chamou, antes de se dar conta de que não havia batido mais do que quatorze vezes, e de que sua roupa pesava um pouco no bolso que segurava o novelo azul. Novamente, a amiga não respondeu.
   Ignácia girou a maçaneta já esperando ouvir algum tipo de reclamação ou reprovação por ter invadido o espaço ao lado. Mas, para sua surpresa, ali também reinava o silêncio. E havia aquele vazio que se parecia muito com a sensação de tocar um casaco preto e pesado que Ignácia costurara em algum Éon frio.
   Entrou no gabinete e fechou a porta. Era tudo diferente do seu. No gabinete da vizinha, as lâmpadas de fora pareciam não fazer efeito. Tudo o que se podia enxergar era pelo reflexo de algum brilho que emanava de sentimentos e sensações verdes, lilazes, azuis e negros.
   Resgatou, de uma gaveta que brilhava como seus sentimentos, um boneco de pano mal acabado. Com a agulha, criou um sorriso como sorriria Pan em suas ideias, e compreendeu que saía dali uma melodia, e que saía dali para fora da fábrica, e lá estaria Pan.

III.



IV.

   Se havia estabelecido uma disputa injusta entre Ignácia e as três senhoras pelo domínio infame do destino da costureira. A lei era clara, e não deveria ter sido ameaçada pela criança de fio azul e marias chiquinhas: nada que pertencesse à fabrica tinha permissão para deixá-la, e isso incluía o fio; o boneco; o material que compunha o boneco; os sentimentos que vestiam Ignácia; e, por fim, até mesmo Ignácia.
   Como era tudo de que dispunha, a primeira senhora disparou seu amaranhado de fios de cabelo em direção à costureira.
  A deusa retribuiu o olhar gritante de Ignácia. Mas, não compreendia dentro de si o motivo.
   A distração só teve fim quando a costureira reconheceu, em meio às centenas de tecidos, algumas cores, sentimentos e sensações familiares. Tudo parecia pesar demais aos braços da gerente e, ao primeiro fraquejo, a segunda senhora aproveitou a queda para lançar tudo aquilo que carregava desde o primeiro de todos os éons sobre Ignácia, a fim de frustrar a tentativa de fuga.
   Ignácia sabia que não haviam traças, nem habilidade para desviar da pilha de tecidos. Lançou um sorriso torto ao boneco, apertou-o ao peito junto de seu novelo de fio azul, se encolheu, fechou os olhos, e ficou esperando o golpe enquanto protegia tudo o que em seu julgamento parecia ser importante.
   Os tecidos pesados machucavam enquanto eram despejados sobre o corpo de Ignácia. Alguns pareciam que nunca terminariam de cair sobre ela, como se fossem maiores do que realmente eram. Os leves pareciam fazer o impacto diminuir. Caíram sobre a costureira todos os tecidos sinestésicos e anestésicos sem que se produzisse sequer um suspiro de dor.
   Descontraindo o pescoço, e depois o resto do corpo, foi como Ignácia lentamente se levantou. As pernas tremiam. O tecido de seu macacão já não era o mais quente, e o choque havia quase esgotado suas forças. Devagar como a reerguida caíam de seus ombros ao chão milhares de tecidos em trapos, desgastados, puíndo e sem cor. Assim como os tecidos, os fios de cabelo moirados da primeira senhora, as vestes da segunda, e toda imagem que se podia formar fora do corpo de Ignácia havia perdido sua cor.
   O macacão azul tinha um efeito ou reflexo mais vívido em meio à paisagem em escala de cinza. O fio brilhava na mesma intensidade que sempre, mas parecia mais bonito isoladamente. Os cabelos verdes e bagunçados quase iluminavam o corpo da costureira.
   Ignácia aliviou a pressão contra o fio desabraçando aos poucos o boneco, que ainda sorria torto. Os antebraços, com os quais havia protegido seus tesouros, não foram perdoados pela pilha de tecidos. Pareciam um pouco acinzentados, e surgiram marcas rasgadas de tecido puíndo na superfície, mas, ainda estavam lá, ligando as mãos ao corpo e, de modo indireto, a costura ao fio.
   Não sabia o que esperar da terceira senhora. Nunca antes a havia visto, mas alguma sensação cinzenta que parecia não pesar nos ombros daquela desconhecida velha dava a certeza de que não havia engano. A senhora sequer havia se levantado do trono. Ela tinha olhos cansados e ternos, que assistiam pacientemente às duas companheiras se recuperando dos ataques.
 - Vocês sentiram, não? - perguntou às senhoras caídas. - Já não cabe a nós decidir.
   A pequena costureira não conseguia assimilar as palavras. Uma aura de tontura e ar diferente tomou posse de sua realidade. Parecia estar sonhando com detalhes minuciosamente traçados. Não via as três senhoras. Tudo o que podia enxergar era uma multidão de pés batendo no chão e um rosto, com meio sorriso torto e um par de olhos sorridentes que se abriam.
 - Por que Ela está cantando? É contra a Suprema Lei! - exclamou, com a voz trêmula, a gerente. A terceira senhora, que agora segurava uma Ignácia desmaiada nos braços, indicou o boneco de pano. O sorriso torto reluzia.
 - O formato do sorriso do boneco -, começou a responder a velha - não é uma costura regular. Não é reto, nem bonito, nem feio. É particular e único. Tão singular que já não pertence mais ao boneco, e sim o boneco a ele. E o também o pano de que foi feito o boneco, bem como a agulha que o costurou. E à individualidade da criação, Ignácia não o criou pela lei, e sim pelo caos, portanto, também não nos pertence seu destino. Nem seu fio, nem seus cabelos, nem suas vestes. Ela carregará para sempre algo de nós, que agora pertence mais a ela do que a nós. A deusa despertou, irmãs, e continuará cantando aos ventos o destino dessa pequena costureira.

   Ignácia ouvia o batucar no templo, enquanto seu fio se apossava da imagem completa da Deusa. Passou intuitivamente a orquestrar o ritmo do desespero do templo. A melodia já era conhecida como uma canção de ninar, era uma melodia que atormentara seus dias de costureira. O boneco se desfazia em uma cor que Ignácia sabia que se chamava Pan. E quando foi gritar pelo nome da amiga, os outros deuses arrancaram todos os fios de sua voz, e uma lágrima caiu sobre o espelho d'água.


V.

   Como já é sabido, eu nunca tenho coração para escrever o número cinco. E se parecer malfeitamente remendado, é porque algumas lembranças ofuscadas se tornaram incosturáveis.

domingo, 8 de abril de 2018

O livro que eu não terminei

   Não estava pronta. Lúcia havia planejado a metafora inteira, todas as personagens e seus passados heróicos. Havia criado os homens, os deuses, e as musas que cantariam sua obra. O universo inteiro do livro se infantilizava para mascarar suas mágoas. Dançava em suas escritas de linha que narravam a vida emocional de uma costureira. Mas a história não estava pronta.
   ‎Havia um receio, que flertava em partes com a mesma dor que sentira ao conceber alguns dos seus piores poemas, e em partes com a tragédia real que fundamentava sua visão infantil e rancorosa dos acontecimentos. Não estava pronta pra rasgar uma promessa, havia prometido se vingar em um livro.
   ‎Um boneco vodu preso pelo pescoço e pela simbologia a encarava da estante. Lúcia o costurara com saudosidade a uma lembrança. Bibliográfica, é claro. Tá tudo no livro. Como a personagem principal do livro o fizera, costurando pedaço a pedaço alguns retalhos de coração.
   ‎A linha era um tipo de metáfora pra vida, e quando uma costureira começava a embaralhar sua linha era sinal de que o destino a buscaria. A protagonista não tinha nem teria esse problema, porque sempre havia um pouco de sua linha no coração do boneco vodu. Que não estava pronto.
   ‎Para encarar de cima do armário e desdenhar a escrita falha de alguém que não estava pronta pra mostrar suas feridas em história, o boneco já tinha seu camarote e se fazia público do fracasso. Sabia que era uma história ruim. Lúcia evitava olhar em sua direção. A não ser nos dias em que alguma lembrança pictórica tão semelhante àquele boneco e à metáfora surgiam e a vida recomeçava a imitar a arte.
   ‎O boneco se fazia testemunha de outros tempos e de dias, talvez, melhores, mas em que Lúcia não esteve pronta. Foi a aura desafiadora de tudo o que o boneco representava que fez com que Lúcia jurasse nunca terminar a história.
   ‎Às posteriores cobranças de seu estimado boneco, relutava, respondia. "Eu não vou te dar vida. Eu não vou te dar vida."
   ‎

quinta-feira, 29 de março de 2018

Medo da chuva

   Está ficando difícil respirar. Sob os escombros, o corpo dói em diversas fibras de músculos estiradas pela extensão da carne. Chove pouco, e não dá pra dizer se as gotas geladas aliviam ou pioram meus membros imobilizados.
   ‎Eu conheço bem a chuva. É como se quisesse me empurrar para baixo partícula a partícula. Vez a vez em que choveu, antes mesmo do medo, antes das ruínas, antes do meu corpo colidir com os escombros.
   ‎Na segunda vez que vi esse prédio estava chovendo. Não lembro se foi naquele dia que eu me encantei pelo lugar, mas lembro de ter pensado que poderia ser a minha casa. Eu corri da chuva e me escondi debaixo da marquise. E me deixei por horas contemplar a arquitetura que, de acordo com a minha imaginação, parecia com a Portland que encantava Lovecraft. Outro dia eu passava na frente, com um interesse mais fervoroso, quando começou a chover granizo. E aquele lugar parecia seguro, tinha até chance de se tornar lar.
   ‎Quando toda aquela construção colossal e radiante desabou eu caí com os escombros. Já havia feito antes visitas suficientes pra saber que haviam rachaduras nas paredes, problemas na fundação, estrutura construída na medida do orçamento possível. E por um lado me surpreendi, porque de acordo com os cálculos da minha fantasia aquele era o lugar perfeito pra chamar de lar com seus defeitos charmosos aos olhos de quem despreza a arte e a arquitetura tanto quanto eu. E por outro, me senti culpada por comprar o apartamento sem resolver os problemas estruturais. E quando choveu, desabou. E agora estou sob os escombros.
   ‎A verdade é que escrevo esse sentimento deitada em minha cama. Acima de mim, como escombros, toda a reflexão de como tudo foi tão bom antes da gente desmoronar, e como a gente desmoronou sem motivo. Quando ando pela cidade, parece que todos os apartamentos poderiam ser o nosso se as coisas entre nós e fora nós melhorassem um pouco. Nunca tive na verdade dinheiro pra comprar um apartamento, mas noite passada sonhei com aquele que ia ser o nosso par de alianças.
   ‎Como um corpo sob nossos escombros eu fico deitada, sem saber se você ainda chamaria de seu o meu lado vazio sob a chuva e escombros.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Desvelar o silêncio

O silêncio é como tuas mãos,
Suave e delicado, desliza
Marcando o tempo dessa saudade,
Evocando minha tempestade,
Deixando a sequela imprecisa
Do próprio silêncio e das mãos.

O silêncio é a minha mão boa.
Perdoa, se as palavras não saem,
Se as palavras não consentem
Atrapalhar o que dizem teus olhos
Que eu sei que não mentem;

Perdoa
Se as palavras não salvam
Nossa ferida aberta
E nem mesmo as palavras mais bonitas
Nos puderam salvar de uma morte certa.

Eu contemplava o silêncio,
Naquela época, e sabia
Que ele já não nos cabia,
E eu estava errada em lutar até o cansaço
Contra a tua paz
E o teu espaço.

A morte também mentia.

Velar nosso silêncio,
Por todos esses dias
Foi como o limbo de tudo o que existe
Como a venda que esconde a mudança.

Desde quando tudo estava bem,
Éramos outros,
Até quando não estava,
Éramos outros,
Até quando já nem existia,
Éramos outros,
Até quando o silêncio se impregnou por tudo:
Teus olhos, tuas mãos, tudo o que não mente,
Já éramos outros
Maiores em aspectos particulares,
Apenas éramos
Nossos aspectos particulares
Velando o silêncio para fingir que estava tudo bem.

De tudo o que minhas mãos sentem
Ao tocar as tuas,
Feito algo maior que só duas
Fica a certeza
De que teus olhos não mentem.

Fomos tantos outros
E a certeza de que há algo que nunca mudou
Tenta tanto em palavras se impor,
Quebrar esse véu do silêncio, e não posso,
Me sairia tão impreciso
Porque tenho visto tão pouco do teu sorriso
E tanto do teu amor.

Não quero atrapalhar nenhum dos momentos em que eu te vejo só para dizer que doeu muito e agora não dói mais porque eu sei que apesar do silêncio, você não me engana, e eu sei que você vai continuar aqui.

O silêncio mente.
Teus olhos, tuas mãos e teu jeito, não.