segunda-feira, 14 de março de 2022

Decantação

Sobre as coisas que não significam nada:

   Levantei o rosto extasiado pelo toque ao corpo, desviando o olhar da companhia, voltando-o para o nada. À sombra que permeava o quarto, ainda poderia enxergar a forma do que quisesse enxergar se não tivesse dirigido os olhos, e também a mente, para nada. Não estavam fechados. Ainda havia algo frente a eles, algo tão impeculiar que não faria diferença olhar ou não olhar. E com os olhos desconectados das formas ternas - e da existência de mais alguém - desfrutei meu prazer egoísta, onde éramos apenas eu, a satisfação corporal e mais nada.
   Não deveria significar nada. Não deve ter parecido nada. Agora distante de meu êxtase, fito meu corpo com apatia. Não pela aparência, pois é esbelto, mas pelo desperdício. Meu corpo é versado nos rituais, é também funcional. Meu corpo conhece a elevação, mas não a busca. Se conforma com conhecê-la e deixa de se empenhar em buscá-la. E se deixa controlar por minha mente conturbada.
   Sorrir em retribuição. Levantar o rosto, desviar o olhar. Sentar. Levantar. A mente conduz meu corpo numa dança precisa. Da mecanicidade dos passos que masterizo à inclinação de ângulos precisos para seguir o roteiro traçado, feito marionete. Executa os passos que dita a mente. Permite-se. Mas não se entrega.
   Existem memórias abstratas que minha mente conecta ao corpo, e todas me esvaziam dos roteiros que redigi e cujos atos nunca pude finalizar. E mais marcantes que o toque ou que o orgasmo são os fragmentos de memória fluindo cada vez mais belos e disformes para fora do plano onde um dia fui capaz de projetar visões. O tempo os suga como uma bactéria que decompõe meu cadáver, lembrando que em algum momento, assim como a perfeição e a beleza da memória, também inexistirei. Tento preservar as memórias como fragmentos, remoendo que minha visão quase sempre prevaleça ao tato.
   Exceto por quando levantei o rosto e voltei o olhar para nada. Não vi feição nenhuma que me desgostaria esquecer. Não vi as formas de corpos projetados na parede à meia luz. E não ouvi as palavras que não devem ser ditas na cama. Não tendo em que pensar, minha mente abriu mão de controlar o corpo, e este, desimpedido, se permitiu entregar e sentir com a atenção que não deveria dividir com mais nada.
   Fito meu corpo com apatia porque, ao tomar o controle de volta, eu o desperdiço.

Sobre as coisas que significam:

   Minha mente delira ao calor de uma febre inexistente. Tudo aquilo de que desviei o olhar no calor do momento é confortante e também intrigante. É agradável como companhia, é estonteante como personalidade.
   O corpo é fácil. Mas, a mente é incapaz de ter controle de si mesma, e ela agora toca as nuvens com gosto e apreensão, pois já conhece a sensação de cair. E me permito continuar subindo. Isolo os acontecimentos simples, menos fervorosos, e ao analisar com cuidado, são todos ternos. Mantenho o corpo a distância por poucos parágrafos apenas para certificar-me da veracidade da paixão. Procede.

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