domingo, 27 de março de 2022

Esse pedaço de papel não existe

    Este pedaço de papel inexistente é meu refluxo. A única vida que posso dar a ele é parte da que me pertence, mas concedo-me. Porque concordo que vivo demais, mas também discordo de que a vida já não me cabe. Das vidas que vivo, milhões de vidas que sequer existiram, e também as que existiram, se posso registrá-las, continuarei vivendo em paralelo a todos que também as viverem graças a esse papel metafórico.

   Não quero que aconteça com tudo isso que já não cabe em mim e devo vomitar ao papel o que aconteceu com a Ísis. Já não lembro quase nada dela, exceto o impacto que foi na época sentir tudo o que senti por ela. Acredito que as vidas que nunca existiram são mais sujeitas à dismorfia que as outras. De certo modo, as que existiram deixam rasgos na realidade - por mais que nada não seja naturalmente sujeito a mudança - e renascem em marcas do passado e situações do presente, por minúsculo que seja esse tempo. Já as que nunca existiram são apenas histórias que se deixo que habitem apenas a minha mente raramente algum rasgo ou imagem me reconstroi uma memória profunda daquilo que vivi. Como a Ísis, que não lembro se tinha personalidade ou se apenas assumo que ela deveria ter uma. Como pensei que ela tinha olhos azuis ao tentar encontrar algo concreto na memória, mas depois me perguntei se não seriam verdes, e agora creio que eram talvez apenas claros sem cor nenhuma específica.

   Não acredito que existam mentiras, e tampouco que alguém me poderia envenenar com mentiras. As mentiras, as que inventamos conscientemente, são vida que damos à vontade de que algo fosse diferente de como é. E as que sonhamos, acordados ou não, também são experiências por onde nossas cabeças flutuam. Não há como me envenenar porque as crio toda hora, e portanto sei identificá-las, e sei também brincar como se as vivesse. Dito isso, testo a exaustão física de quem dormiu pouco, a mental de quem viveu muito e o significado ao papel que menti para tentar, no futuro, pousar a consciência sobre como foi viver a realidade semicosciente.

   Algumas coisas só se deve viver em falso. Me sinto em poder de tornar realidade muito do que sonho, mas a maior parte de meus sonhos é pequena demais para ocupar um poder tão grande. Talvez alguns não fossem se não coubesse a mim vivê-los. Talvez não fossem se você soubesse ler, investigar, procurar. Dar vida a tudo que se sonha seria um desperdício não só de poder, mas também de coragem. É preciso coragem para dar-se a uma existência, e é preciso também coragem para aceitar vivê-la. E eu não vejo ninguém fazer nada a respeito de nada. E o tempo, as coisas que existem de verdade, não se preenchem de vazio.

   Outras coisas se deve viver com tudo. E por isso não devo dizer mais nada, não ao papel que sequer existe.

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