sexta-feira, 19 de maio de 2023

André, que não tinha um sobrenome

    Elias segurou o retrato de sua finada esposa e encarou-o por algum tempo. Pouco tempo, para ele. Despedia-se não da esposa, mas da vida que tinha com ela. A condição de saúde da companheira reduziu o tempo, também pouco, da vida que tinha planejado. A doença veio antes mesmo de surgirem discussões sobre a possibilidade de filhos, de modo que, exceto Elias, não sobrara ninguém mais para encarar o retrato. Também foi gentil, de modo que seu cadáver conservou a beleza de um corpo jovem, como o do esposo, e pensando nele, Elias invejou, por um instante, a certeza que tinha de que a esposa estaria, nesse mesmo momento, recebendo a graça da salvação em outro mundo, um mundo do qual Elias se via muito distante.

   Quando devolveu o retrato ao balcão, reparou na toalha cuidadosamente bordada com flores em formas e pontos complexos, da qual a esposa tanto gostava. Parecia ser ainda ontem que ela ficara impressionada quando Elias mostrou, ao decorar pela primeira vez a casa em que os recém casados viveriam, os riquíssimos bordados florais no enxoval que era sua herança de família. Pegou cuidadosamente a toalha, deslizando os dedos pela textura dos fios, dobrou e guardou numa mala.

   Fez uma doação, pelo aplicativo do banco no computador, em homenagem a finada esposa, a uma ONG que prestava assistência a vítimas de crimes hediondos. Ficou sabendo da instituição quando a esposa ainda era saudável. Assistiam juntos ao noticiário, e Maria Antônia da Silva Guerrero concedia entrevista pela primeira vez desde que foi resgatada após 27 anos de cárcere privado. Quando a entrevistada mencionou o apoio recebido pelo Instituto Humanar, a esposa se emocionou, porque 27 anos eram mais ou menos a idade média do casal, e Elias manteve essa cena fresca na memória.

   Já era noite, período em que deveria permanecer no computador para trabalhar, mas Elias precisava ir até a cidade, que não era longe se fosse dirigindo - cerca de 15km de distância da modesta chácara onde vivia -, para a aquisição de alguns itens essenciais.

   Quando a atendente do caixa da farmácia perguntou se Elias desejava CPF na nota, seu humor se amargurou. A praga dessa época é que o governo quer controlar tudo, todo mundo tem um número que tem que ser usado pra registro, e qualquer deslize é fácil te rastrear, pensou. Pegou a sacola de compras. Ao menos, a humanidade já inventou soluções para amenizar os problemas do albinismo. Após a farmácia, fez uma pausa para se alimentar, e comprou uma grande quantidade de comida enlatada, que colocou numa mochila nas costas, a única bagagem que carregava além da mala com seu enxoval. Elias pegou o metrô e no que pareceram segundos, já estava longe, muito longe de onde deixara o retrato da esposa.

   Elias entrou no seu bunker por uma entrada oculta na lateral debaixo de um piso falso, que dava num túnel para a rede de esgoto. No ambiente, havia uma mesinha, uma cadeira, um vaso sanitário que funcionava e uma prateleira, uma porta, que apesar de trancada e cuja chave foi propositalmente perdida, dava para um ambiente que Elias sabia o que armazenava. Acima, um alçapão, que era a verdadeira entrada e saída do bunker. Sobre a mesinha, um jornal que datava da última vez que estivera ali.

   Após abastecer a prateleira com a comida enlatada, abriu uma das latinhas, jogou o conteúdo pelo sanitário e deu a descarga. Pegou um frasco do bolso do casaco, tomou um gole, guardou-o e se sentou. Abriu a mala e tirou um pano em branco e começou a bordar, parando apenas quando o conteúdo do frasco se esgotou.

   Elias então besuntou-se com o bloqueador solar comprado meses atrás, na farmácia, no dia em que saiu da casa em que morava com sua finada esposa. Saiu do bunker e retornou, tomando o cuidado de colocar a estante sobre o azulejo que dava para o túnel escondido.

   O jeito com que o capitão Neves encontrou o bunker assombrou a mente do policial por semanas, dada a violência e a falta de um culpado pelos crimes que o levaram à entrada. Inicialmente denunciado apenas um assassinato, cuja investigação da cena do crime levou a outros corpos próximos, todos golpeados a arma branca, que agonizaram no chão até perderem sangue demais, até irem a óbito. Todos os corpos convidando a equipe a investigar mais e mais a campina, como pegadas que levaram a um último cadáver caído sobre o alçapão, segurando ainda a chave do cadeado.

   Ao explorar o bunker e se deparar com Elias ao lado de uma pilha de latas de comida conservada vazias, cresceu na consciência do capitão a dúvida se deveria odiar o assassino pela brutalidade dos crimes, ou perdoá-lo, por ter permitido que encontrasse aquela pobre alma encarcerada naquele ambiente insalubre.

- Qual é o seu nome? - perguntou o capitão.

- A-A-André, senhor...

- Meu deus! - em sua vida de policial, Marcos Neves esperava agir mais com as mãos molhadas do que com crimes grandes e cruéis, e se arrependeu de ter escolhido a profissão após o calafrio que teve ao ver, sobre a mesinha, um jornal antigo, com a manchete de que dois anos depois do sumiço da filha, os pais de Maria Antônia da Silva Guerrero ainda buscavam por respostas. - Há quanto tempo você tá aqui?

   A mente do capitão só teve paz ao saber que a vítima encontrada aquele dia, apesar do grande trauma que a impediu de dar qualquer detalhe sobre seus sequestradores e sua vida no bunker, foi acolhida pelo Instituto Humanar, e que foi permitido que André ficasse com as duas outras coisas encontradas naquele bunker após as investigações - uma grande quantia de dinheiro em espécie, e uma mala cheia de toalhas e panos bordados com muito detalhe, alguns dos quais aparentavam existir há centenários.

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