sábado, 27 de junho de 2015

Whatever will be, will be.

   Os dedos de Lúcia sabiam contar até dez. A mochila suspensa no guarda roupas a convidava a fugir das estrelas tanto quanto os ursinhos de pelúcia da estante pediam um abraço de consolo. Os sapatos de couro marrom com picotes florais clamavam por uma dança, mas Lúcia não sabia qual saia vestir. A vontade de perguntar à mãe se depois do dez vinha o doze ou o quinze contrastava com o onze piscante de uma das suas lembranças mais longínquas que o pré-escola.
   Lembranças estas que, ao olhar calado de Lúcia, pareciam tão distantes quanto uma outra vida. Tão bonitas quanto uma dessas fotografias antigas que as avós mostram aos netos.
   O passado era certo, apenas o futuro atormentava sua cabeça. Cada estrela de Lúcia brilhava como uma promessa, e a menina alcançava todo o céu e os confins do universo. A paz mundial, o fim da fome, a igualdade entre os gêneros, o fim do racismo e da homofobia, a cura do câncer, a sustentabilidade, o fim da corrupção, a libertação do sistema capitalista, a melhoria do ensino, o fim da solidão. Dava pra contar nos dedos. Dava pra alcançar nos dedos.
   Mas houve algum momento esquecido na vida de Lúcia em que o ânimo para levantar da cama nas geladas manhãs curitibanas e sorrir para os ipês amarelos desintegrou-se. Seu coração em muito se parecia com o tanque de gasolina de uma Ferrari no exato segundo em que todo o petróleo do mundo se esgotou.
   A morte parecia complementar ao olhar enrugado de Lúcia tanto quanto a desilusão parece à vida. Porque cada estrela que Lúcia luzia desintegrava-se no pensamento de levantar da cadeira e ir até a cozinha para pegar um café. Aqueles olhos negros assistiram ao apagamento de cada estrela até que o céu se pudesse refletir nas pupilas dilatadas do descaso. Pupilas que assistiram à morte matinal de todos os sonhos da meia noite e permaneceram caladas.
   E calada seguia Lúcia. Assistiu à morte da infância e já não sabia se a tinha vivido. Assistiu à morte das estrelas que uma vez carregara no colo. Assistiu à morte da mãe e já nem queria perguntar que número vem depois do dez para não gastar fôlego. Assistiu aos sapatos que queriam dançar e encarou-os imóvel. Contou outra vez até dez e, quando abrisse os olhos, tudo teria sido um sonho. Abriu os olhos e nada. Depois do dez vem o zero.

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Whatever will be, will be

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