sexta-feira, 31 de julho de 2015

e = m.c²

Tenho feito déjà vu
Lembranças de outro universo,
E como aqui foi infeliz
Eu acredito no multiverso,
Eu vou te procurar no
[multiverso, meu amor.

Fecho os olhos, você me sorri
Como nunca sorriria aqui,
Eu sei que nós não estamos
[tão longe,
A quantos anos-luz eu te
[encontro, meu amor?
Minha nave está de partida
Para o lugar do multiverso
Em que o teu olhar não é ferida
Ao meu querer.

Que difere estar perdida no
[espaço ou no mundo
onírico,
Se é tudo parte do multiverso?
Se tudo me parte nesse
[universo,
Onde hei de te amar?

Porque eu encontrei estrelas
[axiais
E paraísos glaciais
Em tantos milhões de galáxias,
O multiverso é o axioma
De cada sonho que o tempo
[retoma
Estar na tela colorida em que
[se projeta o real.

E de repente, a dobra espacial
[do tempo acaba,
E eu não sei em que momento
[deixei meu corpo virar
luz,
Minha nave quebrou em algum
[lugar do multiverso,
Milhões de anos-luz distante
[de nós,
Será que ainda dá pra te
[encontrar?
Será que esse universo está
[muito longe?

Já não sei há quanto tempo
Essa fenda me abriga,
Não sei o que o tempo é.
Sei que periga
De eu nunca mais sair daqui,
Quantos outros eus
De outros universos virão te
[procurar?
Será que algum vai me
[resgatar
Dessa solidão?

Eu só queria te encontrar no
[multiverso, meu amor,
Eu sei que sou feliz no
[multiverso.

sábado, 25 de julho de 2015

Uma barra de chocolate belga

  Uma barra de chocolate belga de cima da mesa de centro desafiava o olhar estressado de Lúcia. Não posso, pensou. As palavras “início de dieta” marcavam o coração mais que o papel do calendário gigante pendurado atrás da porta.
  Lúcia suspirou. Correu os olhos pelo resto da sala em busca de consolo. Evitou com as forças que pôde olhar para as almofadas macias e viscoelásticas de cima do sofá novo, pois sabia que a mínima pausa de seu rito matutino resultaria em atraso para o escritório. Foi desviando os olhos do sofá que notou o inferno paralelo do espelho.
  A maldita lâmina de prata era certamente o objeto mais cruel da casa. “Você é gorda, ‘Lúcia”, dizia a vítrea superfície, sem medir as palavras. Mas isso não era novidade aos ouvidos de Lúcia. Os olhos se pareciam ter atraído pelo chão ou pela posição baixa, e as sobrancelhas pareciam querer se beijar à medida que franzia a testa.
  Lúcia podia sentir novamente o bafo do primeiro dia de verão soprar suas bochechas rechonchudas e sorridentes. A mãe lia um livro, sentada no banco da praça, e os irmãos faziam fila para descer do escorregador. Algumas crianças brincavam na gangorra, Lúcia correu para brincar junto a elas.
  “Não deixa a gordinha brincar na gangorra!”, gritou a Regina George da patota. “O seu problema é que você é uma baleia, não dá pra brincar de gangorra com você”, diziam as meninas. Lúcia correu para a mãe, chorando. “O seu problema é que você é uma baleia”, dizia o espelho. Lúcia correu, cheia de lágrimas, os olhos pela sala.
  O livro de Fernando Pessoa ainda estava aberto no braço do sofá, e, nele, a Lúcia rechonchuda encontrou seu alívio.
  Sentou-se no sofá - muito mais confortável que a minúscula cadeira de escritório projetada para gente magra - e leu a estrofe já aberta de Tabacaria:

“(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida)”

  Como que acariciada pelas mãos do poeta, Lúcia se deixou relaxar no sofá e ligar para o chefe dizendo que estava doente. Até decidiu que quando fosse trabalhar, exigiria uma cadeira maior. Sentada de costas para o espelho, passou o resto da manhã se deliciando numa afrodisíaca barra de chocolate belga.


domingo, 19 de julho de 2015

Um copo de cristal fosco com entalhes florais

  Lúcia não havia sequer tocado no copo de cristal com entalhes florais (sabem os deuses de quê) que jazia à sua frente desde quando foi posto pelo último criado, que deixava a casa com o receio de estar abandonando a ex patroa aos seus medos que, não fosse a fé cristã, soariam sorrateiramente verossímeis.
  A madame temia a solidão mais que a morte, afinal, esta soava infinitamente mais suave que o confronto aos próprios pensamentos. O pedido de demissão do último sobrevivente da criadagem era o motivo da busca recorrente dos dentes pelos tocos de unha que ainda estavam presos aos dedos, tendo sobrevivido ao ataque que sucedeu do último pesadelo.
  E o copo, estagnado sobre a mesa de centro, instigava a sede de mais de vinte e quatro horas e aumentava o abismo infernal, o tártaro subconsciente que os olhos de Lúcia materializavam sobre os dois metros que separavam a mão direita da mesinha de centro.
  “Eu não vou sair daqui”, pensou. Fechou os olhos e pediu aos deuses proteção. Durante uma hora inteira permaneceu imóvel, cogitando a possibilidade de pegar o diabo do copo. Somente tomou uma atitude quando sombreou sua mente o medo de que a desidratação projetasse mais alucinações.
  O criado que deixara o copo à espera de Lúcia jantava com a família quando um calafrio estampou o pesar em seu semblante. Agradeceu à esposa pela comida e foi caminhar com o estômago embrulhado. Pensarão que ela fez sozinha, disse para si mesmo, e voltou para casa sentindo-se um deus capaz de manipular o futuro e se arrepender do passado, portanto, um deus tão estúpido como o homem.
  Lúcia estava feliz com o silêncio. Estava tão grata pelo copo de misericórdia que ainda encarava-o vazio quando os investigadores chegaram à mansão; Lúcia encarava os peritos com tanta vida quanto as flores entalhadas no copo.




sábado, 18 de julho de 2015

Joga a casquinha mista no lixo

Sou reativa, sim,
O querer distância,
Essa fria inconstância
É inerente a mim,
Mas a minha mão é seca
E a tua chega a borrar o
        [desenho,
E a chaga dos meus suspiros é
        [não se abraçarem mais.

Tua existência distrai meu
        [perceber
De onde alcançar a vista,
E me faz cansar a lembrança
De que não gosto de escolher
        [sabor
E por isso peço casquinha
        [mista.

(Sem baunilha, por favor,
Tua saudade é querer morrer,
Teu desejo é uma ordem
E nessa minha saudade de
        [morte
É a sina do sorvete derreter
Sem baunilha, por favor)
Jogo fora a casquinha mista
E vejo que sua mão quente
Se deitaria confortável sobre a
        [minha fria.

Porque sou reativa
Você é leite morno curando
        [insônia,
É bolo no forno, no jardim
        [begônia
Transformando um sorriso
        [infinito em lar.
E parece que estou tão
        [acostumada
A te ouvir reclamar de cada
        [traço torto que traço
Na vida
Que sinto falta de casa,
Do "cheguei, querida!"
E parece que faz cento e
        [cinquenta dias
Que moro na sarjeta,
Procuro mãos pela rua,
Mas nenhuma se encaixa tão
        [bem
Na minha quanto a tua.

Sou inconstante, sim,
Mas de tudo que já deixei
        [acabar
Tua saudade é marca
        [constante em mim.

P. S.: a letra dessa música me lembra você e você entende como ninguém entenderia que foi escrita pra quando as nossas vidas são tão complementares que a gente não tá nem aí.