Lúcia não havia sequer tocado no copo de cristal com entalhes florais (sabem os deuses de quê) que jazia à sua frente desde quando foi posto pelo último criado, que deixava a casa com o receio de estar abandonando a ex patroa aos seus medos que, não fosse a fé cristã, soariam sorrateiramente verossímeis.
A madame temia a solidão mais que a morte, afinal, esta soava infinitamente mais suave que o confronto aos próprios pensamentos. O pedido de demissão do último sobrevivente da criadagem era o motivo da busca recorrente dos dentes pelos tocos de unha que ainda estavam presos aos dedos, tendo sobrevivido ao ataque que sucedeu do último pesadelo.
E o copo, estagnado sobre a mesa de centro, instigava a sede de mais de vinte e quatro horas e aumentava o abismo infernal, o tártaro subconsciente que os olhos de Lúcia materializavam sobre os dois metros que separavam a mão direita da mesinha de centro.
“Eu não vou sair daqui”, pensou. Fechou os olhos e pediu aos deuses proteção. Durante uma hora inteira permaneceu imóvel, cogitando a possibilidade de pegar o diabo do copo. Somente tomou uma atitude quando sombreou sua mente o medo de que a desidratação projetasse mais alucinações.
O criado que deixara o copo à espera de Lúcia jantava com a família quando um calafrio estampou o pesar em seu semblante. Agradeceu à esposa pela comida e foi caminhar com o estômago embrulhado. Pensarão que ela fez sozinha, disse para si mesmo, e voltou para casa sentindo-se um deus capaz de manipular o futuro e se arrepender do passado, portanto, um deus tão estúpido como o homem.
Lúcia estava feliz com o silêncio. Estava tão grata pelo copo de misericórdia que ainda encarava-o vazio quando os investigadores chegaram à mansão; Lúcia encarava os peritos com tanta vida quanto as flores entalhadas no copo.
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