sábado, 25 de julho de 2015

Uma barra de chocolate belga

  Uma barra de chocolate belga de cima da mesa de centro desafiava o olhar estressado de Lúcia. Não posso, pensou. As palavras “início de dieta” marcavam o coração mais que o papel do calendário gigante pendurado atrás da porta.
  Lúcia suspirou. Correu os olhos pelo resto da sala em busca de consolo. Evitou com as forças que pôde olhar para as almofadas macias e viscoelásticas de cima do sofá novo, pois sabia que a mínima pausa de seu rito matutino resultaria em atraso para o escritório. Foi desviando os olhos do sofá que notou o inferno paralelo do espelho.
  A maldita lâmina de prata era certamente o objeto mais cruel da casa. “Você é gorda, ‘Lúcia”, dizia a vítrea superfície, sem medir as palavras. Mas isso não era novidade aos ouvidos de Lúcia. Os olhos se pareciam ter atraído pelo chão ou pela posição baixa, e as sobrancelhas pareciam querer se beijar à medida que franzia a testa.
  Lúcia podia sentir novamente o bafo do primeiro dia de verão soprar suas bochechas rechonchudas e sorridentes. A mãe lia um livro, sentada no banco da praça, e os irmãos faziam fila para descer do escorregador. Algumas crianças brincavam na gangorra, Lúcia correu para brincar junto a elas.
  “Não deixa a gordinha brincar na gangorra!”, gritou a Regina George da patota. “O seu problema é que você é uma baleia, não dá pra brincar de gangorra com você”, diziam as meninas. Lúcia correu para a mãe, chorando. “O seu problema é que você é uma baleia”, dizia o espelho. Lúcia correu, cheia de lágrimas, os olhos pela sala.
  O livro de Fernando Pessoa ainda estava aberto no braço do sofá, e, nele, a Lúcia rechonchuda encontrou seu alívio.
  Sentou-se no sofá - muito mais confortável que a minúscula cadeira de escritório projetada para gente magra - e leu a estrofe já aberta de Tabacaria:

“(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida)”

  Como que acariciada pelas mãos do poeta, Lúcia se deixou relaxar no sofá e ligar para o chefe dizendo que estava doente. Até decidiu que quando fosse trabalhar, exigiria uma cadeira maior. Sentada de costas para o espelho, passou o resto da manhã se deliciando numa afrodisíaca barra de chocolate belga.


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