quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Pandora

O FIM

Foi antes de ver o tumulto acumulado no cemitério que Ignacia soube que aquela seria a parada final. O último dia de sua busca quase infindável culminara até ali.
Ignacia havia sonhado com os olhos daquele homem desde o dia, anos atrás, em que ele se foi. Os pássaros da morte a haviam guiado até ali desde o dia anterior.
Lúcia sabia que ela viria. Pouco sabia sobre o homem que acabara de ser enterrado. E quanto menos ela entendia dele, mais aumentava o oceano que ele representava em seu subconsciente.
- É você, não é? Você é a bruxa de quem ele ressentia não dar ouvidos ao conselho!
- Sou sim -, respondeu Ignacia, ajeitando Pandora nas costas.
Lúcia era a única pessoa não vestida de preto. Não era um protesto, a cor também era triste. Uma cor até mesmo mais triste que o próprio luto. E aquela roupa era a mais doce lembrança que poderia ter do cara.
- Ó meu deus! É ela? - perguntou Lúcia, apontando, com o dedo trêmulo, para Pandora.
- Eu queria... - Ignacia começou a chorar - Desde aquele dia... Eu vi nos olhos dele que ele sentiria falta dela... Até o fim da vida, sabe? Eu me apaixonei por aqueles olhos tristes -, disse, em meio a soluços daquilo que um dia pareceram ser soluções - Tentei lutar contra... Tentei trazê-la de volta desde o dia seguinte, e agora é tarde demais.
Lúcia a abraçou. Sabia como Pandora importava para ele. Porque a saudade já estava nele quando chegou à cidade, e nunca deixara de se alojar naquele olhar tantas vezes triste e distante.
- Ele deu um nome para ela, sabe? Passou as duas últimas horas da vida resmungando baixinho. Ele estava maltrapilho. Havia chegado triste e se deteriorado de um jeito absurdamente lento e doloroso. A morte lhe coube melhor que a sarjeta.
- Sei sim. É por causa dele que os pássaros do teu vestido são presságio de morte.
Aquela era a primeira vez, em três anos, desde que a comprara de volta, que Ignacia abriu o estojo chamado Pandora. Com a ajuda de Lúcia, organizou ali dentro, nos espaços vazios, as flores mais bonitas que encontraram. Colocaram ela aberta e com as flores ali mesmo sobre a lápide.
Ignacia decidiu ir para longe. Pro logar que der na telha. Tinha toda a ajuda da magia edas estrelas para conseguir o que quisesse.
Despediu-se de Pandora. Lúcia agradeceu do fundo do coração por ela, chamando-a pelo nome verdadeiro que o cara tinha dado a ela na infância.
Um passarinho pousou sobre ela, camuflando-se na cor e parecendo não existir por entre as cores.
Lúcia olhou para baixo e viu, na estampa do vestido, o presságio de morte. Ignacia enxugou os olhos e começou a caminhar.

O VESTIDO

Aquele lugar era o fim do mundo, Lúcia reclamava para si todos os dias. Ninguém caía naquele fim de mundo de propósito. Lúcia lamentava o infortúnio de ter aberto uma loja de roupas em um lugar onde ninguém tinha onde mostrar a elegância. Um rosto novo olhava para um vestido azul com desenhos de pássaros próximos da barra, a única peça azul da vitrine. Era um homem, a julgar pela mochila nas costas e pelo semblante diferente era recém chagado na cidade. Seus olhos eram tristes, ele fazia um movimento estranho com os dedos das duas mãos, diferente em uma mão da outra.
O cara entrou na loja, não sabia o que perguntar. Apenas disse:
- Esse vestido... É muito bonito. Muito bonito mesmo. Me lembra alguém que eu abandonei - soluçou.
- Quem?

PANDORA

Sabia que aquele era o lugar certo quando cumprimentou o pássaro que a encarava de cima da placa da loja. Quando a sineta tocou, um arrepio enrijeceu a coluna latejante do velhinho detrás do balcão. - Você sabe o que eu quero, não sabe, velhote? O velho carregava nas rugas um mau pressentimento desde quando havia olhado para dentro do estojo. O neto a havia chamado Pandora, apesar de não entender o porquê do nome não soar bem. Ignacia abriu bem os olhos castanhos, brilhantes feito olho de tigre, enquanto mancava até o balcão. - Quanto você deu por ela? - Pandora? - Ignacia revirou os olhos para o velho atrevido. Naquela noite, havia sonhado com o cara que a havia consultado dias antes. Ele chorava, enconstado numa janela de ônibus, resmungando o verdadeiro nome dela. - Cento e cinquenta contos -, disse o velho, esquivando-se. - Pago a metade. O velho resmungou algo como "bruxa maldita" enquanto pegava, escondida debaixo do balcão, a caixa. Ignacia deu uma espiada para dentro da caixa. - POR QUE VOCÊ LIMPOU, IDIOTA? O velho, que nem tinha parkinson, tremia feito tivesse saído do bamho quente ao vento do inverno. - Por favor, não fui eu! Foi o meu neto! A cigana se acalmou. Abriu o sorriso mais perverso que pode. - Ah, o garoto. E cadê o garoto? Já sabia desde que o outro cara havia se arrastado até a sua tenda: o objeto dentro da caixa era presságio de morte, assim como o nome e o pássaro que a cumprimentou na entrada da loja. - Vai se ferrar! - bradou o velho, com a cara retorcida de amargura. - Já que ele lavou ela, vou pagar só cinquenta. Ignacia estendeu a nota sobre o balcão. O velho abriu a boca para resmungar e foi interrompido. - Relaxa aí -, zombou a bruxa, pensando no pássaro pousado na placa da loja. - Você não vai durar mais que a nota em suas mãos. - Como você pode carregar essa obra do diabo? - Em três anos não terei mais nada a perder.

Homenagem ao meu conto preferido.


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