sábado, 31 de outubro de 2015

   Eu amo essa foto.

   O peculiar da fotografia é que ela nutre os pixels de tudo o que não existe. Eu não consigo fechar os olhos e visualizar aquele sorriso que eu sei que é lindo. Já não é lindo porque eu olho pra fotografia e parece que ela não capturou tudo. E já não existe porque não está na fotografia nem em lugar nenhum, a não ser numa pequena faísca se dissipando que é a consciência de que um dia amei um sorriso. E a imagem também omite todos os pequenos detalhes que me fazem gostar de um rosto, mas só podem ser percebidos bem de pertinho. A existência de tudo isso morre em mim porque o meu cérebro não quis guardar detalhes desses pequenos detalhes na memória, apenas sei que existem.
   Não existe a pessoa que capturou o momento, e sim um resto de sentimento por quem eu não mereço ser desculpada.
   Nem eu existo ao lado da pessoa ao meu lado porque já morri e não consigo renascer: o meu cabelo já não é o mesmo, o meu sorriso já não é o mesmo e minhas roupas não existem mais.
   Nem o lugar existe porque a aura da ternura verte sangue inocente, e o sangue verte proporcionalmente das pessoas felizes da foto.
   Apenas o sorriso que não foi capturado por completo parece existir desde sempre, porque ele não muda em cada eco de realidade que retumba na minha cabeça.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Epifania púrpura

Ah, oceano, nefasto oceano,
Diz alto o que é a perda:
É uma marca ainda roxa
Na minha coxa
Da perna esquerda.

Eu não quero saber
Em que bares você arrasta as
                    [pernas,
Em que pernas você arrasta a dor,
Mas me diz:
Por que a minha dor me vence no
                    [cansaço?
Por que você é imaterial
No meu abraço?

Feito água que jorra ao chão,
Desabando ao oceano sou rio.
Você tem tudo o que quer,
Sorria.

Sou fria.
Porque eu morro demais
No calor que se me esquiva,
Quero qualquer sinopse,
Qualquer sinapse
De me sentir viva.

Ontem, ó oceano, ontem,
Ele me encarou pretensioso,
Deu um trago gostoso
E me acenou.

Águas passadas não movem
                     [moinhos,
Mágoas passadas não conduzem
                     [navios.
Que vertigem é olhar para o mar!
Se todos os outros lugares são
                     [epifanias
(Feito um convés onde tudo o que
                     [me resta é marcar os
                     passos doída),
Nada parece confortável como
                     [braços passados
Ou como o desejo
De me afogar.
                    
Então, eu disse a ele, me abraça,
Pra deitar a vida,
Me aconchegar recolhida
Até que o vento e os eventos
Também te carreguem pra longe de
                     [mim.

Queria, oceano, beijar tudo aquilo
                     [que desconheço
Para afogar de si esse corpo vazio
Que pende de proa a popa do navio
Que não quero deixar queimar.
Queria te beijar, oceano,
Porque cansei dessa viagem
                     [terrível
Pelas projeções que pertenceram a
                     [mim.

Ó ciano, nem tão vivo,
Marco meus passos e qualquer
                     [movimento
Há tempos.
Mas, eis que um dia, pisei tão forte
Que doeu a perna que nunca
                     [reclamou,
E, ao notar sob a saia marca roxa
Não desejei nada tanto quanto a
                     [morte
Manchando o chão com gotículas
                     [vermelhas,
Mas foi só vertigem
De olhar para as ondas que afligem
O meu reflexo, silentes.

De caída que arrasto minhas pernas
Ao primeiro lugar aberto
E peço qualquer coisa que pareça
                     [uma vida.

https://youtu.be/_q0laLr6vks

sábado, 17 de outubro de 2015

Ballet Clássico

   As palavras pareciam deslizar confortavelmente do céu da minha boca, da língua e das paredes da bochecha para preencher a acústica das ruas vazias da cidade à noite.

ÔOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOH, DELÍCIA! QUANTO É SÓ PRA DAR UM BEIJO?

   Minhas amigas começaram a gargalhar como se a minha criatividade para abordagens tivesse atingido seu auge. O homem que andava pela calçada não parecia acreditar no que acabara de ouvir. Sua primeira reação foi uma cara de susto, a segunda foi uma tímida baixada da cabeça. Olhou pro chão e começou a andar mais rápido.
   O vento batia nos longos cabelos loiros de Lúcia enquanto ela pisava, brincalhona, no acelerador, alcançando o pedestre intimidado e fazendo o motor do carro roncar. Ela parecia uma dessas mulheres de propaganda de cerveja, mas era ela que constrangia os homens, e não o contrário.
 - Relaxa aí,gracinha! - alertou, falando em meio aos nossos risos - A gente não vai fazer nada com você.
   Lúcia acelerou o carro. A rua estava vazia, então, nós cinco gritamos sem medo. Fazia cerca de um mês que ela tinha conseguido a carteira de motorista e comprado o carro a prestação. Era um Renault Sandero 1.0 que sofria um pouco para subir os morros da Barreirinha, mas bastava para dar poder a cinco amigas inseparáveis. Éramos eu e a irmã mais nova de Lúcia com 15 anos de idade, nossa outra vizinha, que era um ano mais nova, a "irmã do meio", com 17, e Lúcia tinha 19.
   Os meninos do Combate Barreirinha Futebol Clube nos convidaram para um churrasco no centro de treinamento dos atletas. Quando Lúcia estacionou o carro, não conseguíamos parar de rir. Os meninos nos receberam com a carne já pronta. Era a comemoração da minha entrada para o grupo de jovens da igreja.
   As meninas falavam sobre as nossas cantadas enquanto Lúcia preparava desastradamente a caipirinha de morango e eu fazia bolhas de sabão com a fumaça do narguilé. Era uma honra para mim ouvir que todos concordavam que eu era  a rainha das pedreiras.
   Todos pararam o que estavam fazendo para cantar o funk proibidão que começou a tocar. Lúcia colocou um gelo com LEDs na caipirinha e levantou o copo.

    LEVANTA A BEBIDA QUE PIXCA
    LEVANTA A BEBIDA QUE PIXCA
    LEVANTA A BEBIDA QUE PIXCA, PIXCA, PIXCA, PIXCA, PIXCA!

   Foi uma semana depois que fomos à pista de rolimã do parque São Lourenço para andar de longboard. A tarde foi gostosa, Lucia havia preparado um piqueique.
   Quando estávamos voltando para casa, o CD do Charlie Brown Júnior que estava no rádio parou de tocar.
 - Ih,será que riscou? - Perguntou Lúcia.
 - Deixa eu ver -, disse a nossa amiga mais nova. Pegou o CD e começou a examiná-lo.
   Enquanto isso, Lúcia tentava sintonizar alguma rádio. Mas a atenção foi desviada da direção e, quando o carro quase voou na lombada, a caçula bateu com a mão na porta do carro e o CD quebrou.
   Não foi difícil encontrar outro CD deles, visto que, poucos dias depois o Chorão se tornou a segunda pessoa importante para mim a morrer de overdose em menos de um ano.
   A chegada da nova trilha sonora foi anunciada no meio de um dos nossos passeios noturnos em busca de homens na rua para vomitar nossas pedreiragens.
 - Gente,- chamou Lúcia, - Comprei um CD novo do Charlie Brown!
   Nós gritamos e aplaudimos.
 - Calma que tem mais! Vocês lembram daquele churras lá no combate?
 - Aham
 - Quando eu tava lá na loja eu lembrei daquele dia quando eu vi um mp3 cheio duns funk massa, acho que combina pra testar a potência desse som!
   E foi entre cantadas aos homens da rua, Valescas, Catras e velocidades altas que, pela primeira vez desde que a outra pessoa importante morreu de overdose, eu senti que, apesar dos nossos muitos conflitos e desentendimentos, eu amava a minha vida.
   Essas noites fluíam como o vento que entrava pela janela do Sanderinho e a diversão tornou-se parada obrigatória pelos fins de semana.
   Mas, chegou o dia em que a mãe de Lúcia, hipercatólica e de família super dedicada à religião, bateu seu Fiesta Sedan 2010 e pegou emprestado o Sanderinho pra dar uma volta. Foi o CD começar a tocar que ela parou o carro, deu meia volta e dirigiu-se à sua casa. Escancarou a porta com força e já gritou antes de entrar:
 - LÚCIA, DESCE AQUI AGORA!
 - Que foi, mãe? Pra quê gritar assim?
   Ela mostrou o CD a Lúcia, colocando-o bem em frente à cara da filha.
- O que significa isso? Você caha bonito ficar ouvindo esse tipo de baixaria? Eu te eduquei pra gostar desse tipo de safadeza? Não quero moça da minha família ouvindo esse tipo de coisa, você me entendeu? Curtida!
   E ali mesmo, frente aos olhos de Lúcia, quebrou o CD e jogou-o no chão.
   Por um mês, os passeios noturnos morreram. Mas, eu era a rainha das pedreiras e da pirataria. Gravei um novo mp3 com todo o funk que pude.
 - Lú, toma aqui. Eu gravei um CD novo pra gente ouvir.
 - Mas a minha mãe me mata se ela encontrar esse CD!
 - Se a sua mãe encontrar esse CD, eu garanto que ela não vai nem ouvir;
   Entreguei o CD a ela. Lúcia riu ao ler a inscrição no CD: Ballet Clássico.
   Esses dias eu me enjoei de ouvir as mesmas músicas que ouço sempre. Cansei do pop, do rock, do mpb, da ópera e dos milhões de estilos que eu ouço sem nem saber o nome. E passando pela frente da casa dela, uma luz acendeu o meu sorriso.
 - Ô Lú, bora ouvir um Ballet Clássico?
 - Bora!


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Sete de espadas

Lua cheia, lua plena,
Lua laço,
Ao léo pequena.
Lua lira ritual,
Lua louca, lua azul,
Lua bússola do Sul.

Lua nirvana, lua nova
Minha lua, nova amiga
Lua noite esclarecida,
Lua reaparecida,
Lua lá no céu do dia,
Lua, tua sincronia.

Lua longe, lua oliva,
Lua oeste me cativa.
Lua ar que me completa,
Lua leve e poeta,
Poeta viva,
Lua seleta,
Lua Selene.

Lua ela, lua elo
Da corrente
Laço belo,
Decrescente amarelo
Lua lobo, lua luz.

Lua linda, lua lenta,
Lua em touro
Olhar tesouro,
Lua leste, te estica
Sobre o meu amor
E fica.

Lua norte, lua negra
Lua alegra a sabatina,
Lua lente da matina,
Minha lua mais sincera
Longa flama, lua lima
Lua flor da primavera.

Lua redonda e robusta,
Luau ao longo da areia,
Lua augusta
Lua pulsa
Latente em minha veia.

Lua alma, eu te almo.

Lua lua lua lua lua
Lua lua lua lua lua
Lua lua lua lua lua
Lua lua lua lua lua
Lua lua lua lua lua
Lua lua lua lua lua
Lua lua lua lua lua

Carpe Diem!

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Eu vos declaro Ego e Solidão

Ela caminha,
O sorriso que fere na minha
                    [melancolia
Fere na melancolia que é só
                    [minha,
O olhar de assassina branca,
Ela caminha branca como a
                    [morte,
Ecoa na dor que me definha,
Ecoa na morte que me
                    [espanca,
Ecoa.
Escoa nas lágrimas que não
                    [contenho
Enquanto ela caminha.

Eu na cama,
Ela caminha
Até os olhos que foram tão
                    [meus,
Ou um pouco nós sós,
Ou ao menos reflexivos,
E eles sabem que me procuram
                    [em todas as
                     cadeiras do templo,
Mas eu, na cama,
Não quis ouvir dizer
À morte
Que agora só me resta esperar
                    [morrer.

Eu em cana,
Ela calminha,
Aqueles olhos me prendem
                    [porque eu sei a
                     liturgia décor.
E a morte me carrega
Feito eu fosse um buquê,
Já que tenho tanto resto de
                    [vida quanto as
                     flores,
E, eu vivo por quê,
Se a morte vestida de branco
                    [é tão linda?

Eu vazia como a cama,
À minha chama ela caminha,
E não pude ser testemunha
Porque ela é linda quando,
                    [inocente,
Suga minha vida para compor
                    [seu sorriso,
E eu morro latente.

Ao menos reflexiva,
Ao espelho ainda sou bonita,
Mas ela é mais e não resisto
A esse sorriso que atiça a dor
E já sei que sou tudo menos
                    [forte,
Por favor, me entreguem à
                    [morte
E traguem meu corpo à boca
                    [de seu senhor.

E ao pensar na morte
Vestida de branco sobre o
                    [altar,
Sei que a desejo como os
                    [olhos que a
                     esperam,
Sei que há tempos nesse
                    [olhar, espero,
Sei que nesse jogo fui mero
                    [artifício,
Pois se a beijo no altar, sou só
                    [sacrifício.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Necromancia moderna

   Duas coisas que me desligam completamente do mundo são os cheiros e a música. Esta chega a me trazer milhares de sentimentos enquanto a ouço, já os odores me paralisam enquanto fluem por meus axônios, concentrando minha atenção neles até que o gás se expanda o suficiente para que meu nariz não precise mais fungá-los.
   O fedor do suor e da falta de higiene das pessoas que compartilhavam comigo a mesma unidade de transporte público já era familiar ao meu banco de dados olfativo, e por isso o meu cérebro o ignorava enquanto eu me deixava delirar pelas cordas que soavam forte na medida que meus fones de ouvido reproduziam infielmente o Inverno.
   Era um tempo tão vazio quanto chuvoso. Eu me distraía nos floreios do violino quando aquele cheiro maldito me acordou de um transe musical e me acorrentou à nostalgia. Era uma fragrância melancólica, surreal e exagerada. Seria impossível notar que a fonte do cheiro banhou-se no frasco de perfume antes de sair de casa. Aquele cheiro de sonho indicava um renascimento póstumo que não inexistia mais que minha percepção da dimensão chamada tempo. Aquele cheiro de pesadelo era tão físico que me senti tola por só ter criado coragem de abraçá-la três vezes.
   O perfume, bem marcado pelo meu lobo frontal, se havia tornado a assinatura olfativa de um vazio emocional impreenchível. Foi aquele odor que ergueu a aura de Lúcia à minha frente e pude sentir novamente o toque do cadáver sobre o qual eu derramara, em primeira instância, curiosidade, que foi seguida de alegria, de amizade, de paixão, de silêncio e, por fim, de lágrimas. E o salgado líquido que escorrera por seu corpo inanimado parecia ter revelado uma propriedade necromântica que a trouxe à minha presença naquele momento. Ela segurava uma carteira faltando um cigarro para estar cheia e um frasco vazio de perfume. Sorriu para mim e entrou na fila para descer do ônibus.
   Quando desci para segui-la, seu único vestígio era o cheiro. Mas o cheiro se afastava de mim tão rápido quanto o biarticulado onde estive antes. Eu ainda ouvia os impulsos sonoros atrapalhados pelo mau contato nos fones de ouvido, gotículas da chuva gelada do inverno caíam sobre mim.
   A nostalgia da (in)existência repentina dela é que a fragrância poderia estar no corpo de todas as pessoas da cidade. O que odeio no perfume dela é que é tão popular que todas as casas de Curitiba guardavam um frasco naquele. O fatal daquele cheiro é saber que sentirei falta dela em todos os lugares, mas ela nunca mais estará em nenhum deles. O Inverno acabou, eu desabei.