sábado, 17 de outubro de 2015

Ballet Clássico

   As palavras pareciam deslizar confortavelmente do céu da minha boca, da língua e das paredes da bochecha para preencher a acústica das ruas vazias da cidade à noite.

ÔOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOH, DELÍCIA! QUANTO É SÓ PRA DAR UM BEIJO?

   Minhas amigas começaram a gargalhar como se a minha criatividade para abordagens tivesse atingido seu auge. O homem que andava pela calçada não parecia acreditar no que acabara de ouvir. Sua primeira reação foi uma cara de susto, a segunda foi uma tímida baixada da cabeça. Olhou pro chão e começou a andar mais rápido.
   O vento batia nos longos cabelos loiros de Lúcia enquanto ela pisava, brincalhona, no acelerador, alcançando o pedestre intimidado e fazendo o motor do carro roncar. Ela parecia uma dessas mulheres de propaganda de cerveja, mas era ela que constrangia os homens, e não o contrário.
 - Relaxa aí,gracinha! - alertou, falando em meio aos nossos risos - A gente não vai fazer nada com você.
   Lúcia acelerou o carro. A rua estava vazia, então, nós cinco gritamos sem medo. Fazia cerca de um mês que ela tinha conseguido a carteira de motorista e comprado o carro a prestação. Era um Renault Sandero 1.0 que sofria um pouco para subir os morros da Barreirinha, mas bastava para dar poder a cinco amigas inseparáveis. Éramos eu e a irmã mais nova de Lúcia com 15 anos de idade, nossa outra vizinha, que era um ano mais nova, a "irmã do meio", com 17, e Lúcia tinha 19.
   Os meninos do Combate Barreirinha Futebol Clube nos convidaram para um churrasco no centro de treinamento dos atletas. Quando Lúcia estacionou o carro, não conseguíamos parar de rir. Os meninos nos receberam com a carne já pronta. Era a comemoração da minha entrada para o grupo de jovens da igreja.
   As meninas falavam sobre as nossas cantadas enquanto Lúcia preparava desastradamente a caipirinha de morango e eu fazia bolhas de sabão com a fumaça do narguilé. Era uma honra para mim ouvir que todos concordavam que eu era  a rainha das pedreiras.
   Todos pararam o que estavam fazendo para cantar o funk proibidão que começou a tocar. Lúcia colocou um gelo com LEDs na caipirinha e levantou o copo.

    LEVANTA A BEBIDA QUE PIXCA
    LEVANTA A BEBIDA QUE PIXCA
    LEVANTA A BEBIDA QUE PIXCA, PIXCA, PIXCA, PIXCA, PIXCA!

   Foi uma semana depois que fomos à pista de rolimã do parque São Lourenço para andar de longboard. A tarde foi gostosa, Lucia havia preparado um piqueique.
   Quando estávamos voltando para casa, o CD do Charlie Brown Júnior que estava no rádio parou de tocar.
 - Ih,será que riscou? - Perguntou Lúcia.
 - Deixa eu ver -, disse a nossa amiga mais nova. Pegou o CD e começou a examiná-lo.
   Enquanto isso, Lúcia tentava sintonizar alguma rádio. Mas a atenção foi desviada da direção e, quando o carro quase voou na lombada, a caçula bateu com a mão na porta do carro e o CD quebrou.
   Não foi difícil encontrar outro CD deles, visto que, poucos dias depois o Chorão se tornou a segunda pessoa importante para mim a morrer de overdose em menos de um ano.
   A chegada da nova trilha sonora foi anunciada no meio de um dos nossos passeios noturnos em busca de homens na rua para vomitar nossas pedreiragens.
 - Gente,- chamou Lúcia, - Comprei um CD novo do Charlie Brown!
   Nós gritamos e aplaudimos.
 - Calma que tem mais! Vocês lembram daquele churras lá no combate?
 - Aham
 - Quando eu tava lá na loja eu lembrei daquele dia quando eu vi um mp3 cheio duns funk massa, acho que combina pra testar a potência desse som!
   E foi entre cantadas aos homens da rua, Valescas, Catras e velocidades altas que, pela primeira vez desde que a outra pessoa importante morreu de overdose, eu senti que, apesar dos nossos muitos conflitos e desentendimentos, eu amava a minha vida.
   Essas noites fluíam como o vento que entrava pela janela do Sanderinho e a diversão tornou-se parada obrigatória pelos fins de semana.
   Mas, chegou o dia em que a mãe de Lúcia, hipercatólica e de família super dedicada à religião, bateu seu Fiesta Sedan 2010 e pegou emprestado o Sanderinho pra dar uma volta. Foi o CD começar a tocar que ela parou o carro, deu meia volta e dirigiu-se à sua casa. Escancarou a porta com força e já gritou antes de entrar:
 - LÚCIA, DESCE AQUI AGORA!
 - Que foi, mãe? Pra quê gritar assim?
   Ela mostrou o CD a Lúcia, colocando-o bem em frente à cara da filha.
- O que significa isso? Você caha bonito ficar ouvindo esse tipo de baixaria? Eu te eduquei pra gostar desse tipo de safadeza? Não quero moça da minha família ouvindo esse tipo de coisa, você me entendeu? Curtida!
   E ali mesmo, frente aos olhos de Lúcia, quebrou o CD e jogou-o no chão.
   Por um mês, os passeios noturnos morreram. Mas, eu era a rainha das pedreiras e da pirataria. Gravei um novo mp3 com todo o funk que pude.
 - Lú, toma aqui. Eu gravei um CD novo pra gente ouvir.
 - Mas a minha mãe me mata se ela encontrar esse CD!
 - Se a sua mãe encontrar esse CD, eu garanto que ela não vai nem ouvir;
   Entreguei o CD a ela. Lúcia riu ao ler a inscrição no CD: Ballet Clássico.
   Esses dias eu me enjoei de ouvir as mesmas músicas que ouço sempre. Cansei do pop, do rock, do mpb, da ópera e dos milhões de estilos que eu ouço sem nem saber o nome. E passando pela frente da casa dela, uma luz acendeu o meu sorriso.
 - Ô Lú, bora ouvir um Ballet Clássico?
 - Bora!


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