segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Necromancia moderna

   Duas coisas que me desligam completamente do mundo são os cheiros e a música. Esta chega a me trazer milhares de sentimentos enquanto a ouço, já os odores me paralisam enquanto fluem por meus axônios, concentrando minha atenção neles até que o gás se expanda o suficiente para que meu nariz não precise mais fungá-los.
   O fedor do suor e da falta de higiene das pessoas que compartilhavam comigo a mesma unidade de transporte público já era familiar ao meu banco de dados olfativo, e por isso o meu cérebro o ignorava enquanto eu me deixava delirar pelas cordas que soavam forte na medida que meus fones de ouvido reproduziam infielmente o Inverno.
   Era um tempo tão vazio quanto chuvoso. Eu me distraía nos floreios do violino quando aquele cheiro maldito me acordou de um transe musical e me acorrentou à nostalgia. Era uma fragrância melancólica, surreal e exagerada. Seria impossível notar que a fonte do cheiro banhou-se no frasco de perfume antes de sair de casa. Aquele cheiro de sonho indicava um renascimento póstumo que não inexistia mais que minha percepção da dimensão chamada tempo. Aquele cheiro de pesadelo era tão físico que me senti tola por só ter criado coragem de abraçá-la três vezes.
   O perfume, bem marcado pelo meu lobo frontal, se havia tornado a assinatura olfativa de um vazio emocional impreenchível. Foi aquele odor que ergueu a aura de Lúcia à minha frente e pude sentir novamente o toque do cadáver sobre o qual eu derramara, em primeira instância, curiosidade, que foi seguida de alegria, de amizade, de paixão, de silêncio e, por fim, de lágrimas. E o salgado líquido que escorrera por seu corpo inanimado parecia ter revelado uma propriedade necromântica que a trouxe à minha presença naquele momento. Ela segurava uma carteira faltando um cigarro para estar cheia e um frasco vazio de perfume. Sorriu para mim e entrou na fila para descer do ônibus.
   Quando desci para segui-la, seu único vestígio era o cheiro. Mas o cheiro se afastava de mim tão rápido quanto o biarticulado onde estive antes. Eu ainda ouvia os impulsos sonoros atrapalhados pelo mau contato nos fones de ouvido, gotículas da chuva gelada do inverno caíam sobre mim.
   A nostalgia da (in)existência repentina dela é que a fragrância poderia estar no corpo de todas as pessoas da cidade. O que odeio no perfume dela é que é tão popular que todas as casas de Curitiba guardavam um frasco naquele. O fatal daquele cheiro é saber que sentirei falta dela em todos os lugares, mas ela nunca mais estará em nenhum deles. O Inverno acabou, eu desabei.




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