quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Ampulheta de papel

Porque é mais evidente a minúcia
De cada parede em meu quarto,
Mais incômoda,
Menos diferente,
Eu me acomodo mais cedo
Para adiar o imutável,
Cada dia me acomodo
Mais desconfortável,
Com a urgência de chegar algo ou alguém
Ou alguma coisa
Alguma pessoa.

Tudo o que eu precisava dizer,
Já disse ontem.
Há uma nota autoadesiva na minha parede,
Lembrando que antes não estava colada,
Eu não precisava lembrar de nada,
E assim sei que o tempo ainda não morreu.
Entre ontem
E hoje,
Eis o que aconteceu:

Hoje acordei incomodada por estar dormindo.
Levantei, a parede cheia de lembretes,
Uma ampulheta de papel infindo.
Eu não quero conversar.
Entre ontem
E hoje,
Nada nem ninguém,
Nenhuma coisa,
Nenhuma pessoa chegou.

Se eu saísse para dar uma caminhada,
Hoje seria um dia diferente.
Além da parede,
A minúcia da rua - e do bairro - é que não há nada.
Tudo o que eu precisava dizer,
Guardei na memória,
Até que eu senti vontade de falar sobre aquilo e já não lembrava mais.
Volto a escrever,
As mesmas palavras,
Que me dão agonia,
Não são as palavras que eu queria,
E assim sei que ainda sei pensar.

Se quando alguma coisa acontecer
Eu já não souber mais falar,
Não souber lembrar,
Não souber mais pensar,
A parede vai continuar como está?

Não sei bem por quê,
Mas o tempo parece importante para algo
Ou alguém.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

If you ever have to learn to live without me

If you ever have to learn to live without me,
Don't hurt me asking,
I could hear your words
As the words of a man were,
And I could never answer,
For I would have been too busy to think of
Such a time apart,
I would rather love.

If you ever have to learn to live without me,
And I would only let myself think of that for a moment,
If I can ever look at you,
Would you still look dreamy,
Would you spill your smile 
Over my memory?

If you ever have to learn to listen alone to our tape,
I'm sorry
For being there when you might
Find a cruel beam of light
Projecting my shape.

If you ever have to learn to live without me,
When you hear never more I'll be there
Don't you dare
Warm my old side of the bed,
Don't you dare
Abandon your eyes to gravity,
Do take care.

sábado, 27 de junho de 2020

Memórias do Oceano

   Começa na segunda-feira. Nos poucos (e suficientes) anos em que baseio minha curta experiência de vida, sempre houveram segundas-feiras. Eu seria muito mais velha se a idade fosse contada pelo número de segundas-feiras sobrevividas. A vida é feita de segundas-feiras, e eu sempre passo empurrada.
   Sou inteligente. Sempre fui uma estrela. Quente, viva e feliz. É domingo. A vida começa amanhã. Mas estou sentada na cama, escrevendo e cogitando um café quente ou uma estrela que talvez pudesse mudar a minha vida. Estou tão feliz que tenho medo de dormir porque não quero que segunda chegue nunca. Tão viva que sou medalha de ouro no esporte de existir de segunda a segunda. Tão quente que as centenas de pedaços de vinil na embalagem de cartolina azul clara ao meu lado pareciam derreter sobre o meu coração, eu não sei se quero ouvir aquela música. Talvez na segunda. Eu queria ser menos inteligente para poder desligar a mente, dormir e aceitar tudo como se fosse uma dádiva. Sempre passei empurrada porque a informação proveniente da escola é tão selecionada e manipulada que não vale a pena me esforçar pelo que se dissipa ao longo das segundas-feiras.
   O roteirista é um sujeitinho ridículo. Não tem criatividade pra fazer surgir uma nova fábula. Muda o enredo, os personagens, o foco narrativo, as segundas-feiras e ainda assim as semanas são sempre iguais. Elas chegam em uma escala cronológica que definha. Nascer é a pior dor à qual todo ser humano é sujeitado. O cérebro bloqueia as memórias do ato porque são um trauma. Além do trauma, são o aviso de que quanto maior e mais exigente for a próxima segunda-feira, mais já estamos acostumados a abaixar a cabeça e fazer o que é esperado (e por quem o fazemos?). Eu não quero fazer nada. Nem por mim, nem por ninguém. Não tenho sonhos suficientes para fazer algo por mim. Nem ninguém por quem me arriscar.
   Não quero procurar por alguém que me faça querer me arriscar. Eu não vou esperar até que algum amor incondicional justifique a minha existência. Já amei e já fui amada e, para mim, basta.
   As células velhas que sobreviveram a todas as minhas segundas-feiras formam um corpo repleto de feridas que cauterizam na água salgada. O mar levou, quando eu era menor, uma pulseirinha de ouro onde estava inscrito meu nome de batismo. De uma corrente tão fina e frágil que nunca me prenderia àquele nome ou àquele ouro. Aos oito anos, o mar me trouxe o meu primeiro amor. Ele tinha nome de anjo, eu não tenho nome. Minha avó sempre me disse que amor de praia não sobe a serra. Ela estava tão encantada com a tradição do ditado popular que não teve tempo de perceber que conheceu meu avô no litoral.
   Eu tenho tendência de amar pessoas tão tristes quanto eu.
   Há pouco tempo, voltei de encontro ao mar. Na beira da praia, existem aqueles fins de onda fracos que cobrem devagar a areia à medida que a maré sobe. Tive medo de sair de casa com os pés descalços. Minha mãe sempre me disse que eu tenho mãos quentes e pés de cadáver. Meus pés estão sempre frios. Esse negócio de ser enjoada com sapato - já que o pacote nascimento grudou uma placa de "feminino" na minha virilha, e os sapatos para essa marca de ser humano são projetados visando estética, e não conforto - me fez ser a criança que estava sempre de tênis e meia porque todos os sapatos abertos machucam a carne. Sou tão acostumada aos pés frios que me sinto nua se estiver sem meias. Tive medo de sair de casa com os pés descalços e tive medo de tocar os fins de onda com os pés.
   O oceano conecta todos os lugares e todas as pessoas e todas as memórias que tocam sua água. Conecta a podridão do esgoto jorrado impiedosamente ao mar - e a sensação ruim ou aliviante que todas as pessoas têm enquanto cagam - e conecta todas as formas fascinantes de vida subaquática, conecta todos os navios que o pensam dominar e seus timoneiros solitários que não compreendem a crueldade da vida em terra, pode reconectar duas pessoas conhecidas e distantes que se banham ao acaso ou até mesmo reconectar uma alma velha de criança ao nome roubado que nunca será seu. 
   Os psicólogos tomam oceano como metáfora do subconsciente humano. Ao tocar seu oceano interior, uma pessoa retoma suas lembranças mais líquidas e dolorosas.

   O disco em pedaços.
   A cada segunda-feira que eu venço, sou menos eu e mais o mundo. 

quinta-feira, 18 de junho de 2020

A Dama de Copas

   Eu achei que demoraria a entender o que se passava na cabeça de Lúcia. Foi o que eu achei há tempo suficiente para concluir, agora, que na verdade eu nunca entendi. Mas isso seria a mais pura maturidade da minha parte, configuraria a serenidade da mulher que aceita o passado e não se deixa atormentar por seus fantasmas. E caso fosse eu tão sábia e tranquila, não estaria agora, às quatro e meia da manhã, refletindo sobre os detalhes de alguns acontecimentos, imaginando coisas que Lúcia nunca confirmou, e pelas quais deslizou vezes suficientes para também nunca negar. E a especulação me aborrece à medida que me afasta da aceitação, tal como um medo que me afasta do meu sonho de rocha, em que sou um ídolo esculpido trazendo certeza e conforto perante meu pedestal.
   Enquanto não raia o dia, tento não apenas me lembrar de como surgiu essa bruma quase mitológica entre Lúcia e eu, mas também dos traços de seu rosto. Porque eu faço alguma ideia arredondada de como eram seus cabelos, seus olhos e sobrancelhas, mas não sou capaz de mesclá-los em uma imagem concisa em minha mente, assim como não consigo traçar com precisão os acontecimentos que teciam a densidade da névoa. Mas, até que pescando algum pensamento na bruma, algo me mordeu a isca.
   Era a primeira vez que jogávamos canastra. Eu estava um pouco nervosa, porque apesar de ter admirado a figura de Lúcia havia tempos, a partida foi como uma porta para conhecer a pessoa que olhava de cima de seu castelo de cartas. O par de Lúcia, no jogo, parecia não fazer muita diferença nos jogos. Talvez por inexperiência, imagino. Ela, por sua vez, era como um exército de uma mulher só. Colocava as cartas na mesa, começava e terminava suas canastras. Me entregou o rei de espadas que me deu a vitória, alegando que não queria descartar sua carta da sorte - um valete de paus. Foi quando entendi o quão supersticiosa era, com certeza mais até do que eu. E depois, tive medo do fim da rodada, porque em todas as partidas seguintes, a sombra de seus olhos parecia me devorar toda vez que meu rei de espadas aparecia novamente.
   Mas, após esse primeiro episódio, tudo me parecia bem. Nossos castelos de cartas, com o tempo, pareceram sólidos, como laços, e as jogatinas se tornaram um hábito. E a superstição, comum a nós duas, nos convidou em certo momento a jogar tarô juntas. Na tiragem que ela fez para mim, tudo indicava para tempos tranquilos. Amor, diversão, serenidade. Eu não sabia por quanto tempo isso se extenderia pelo futuro, mas eu sabia que - e especulo até hoje o porquê - ela lia cartas sobre o meu presente. Talvez estivesse presa naquele momento. E talvez tenha continuado presa nele para sempre, ruminando a minha fortuna durante a sucessão de sombras que pairou sobre nós nos próximos instantes.
   A primeira carta que chamou atenção quando chegou minha vez de ler a sorte dela foi uma dama de copas. Lúcia e seu exército de uma mulher só invadiram a minha magia, interpretando sozinha suas cartas como melhor lhe convinha. "Entendi. A dama de copas sou eu", começou. "É claro, não tem carta melhor para me representar. Sou passiva demais, não falo muito sobre meus sentimentos". E assim me tomou a leitura inteira, assim como tomou para si a metáfora e o apelido de Dama de Copas. E nada do que previu para si mesma aconteceu. Talvez por não lhe caber o direito de interpretar as cartas que foram abertas por mim.
   Mas a superstição que Lúcia vestia como personalidade era importante demais nutrindo suas inseguranças para que fosse deixada de lado só porque uma previsão não se realizou. Após botar em mim a culpa de não saber ler cartas, começou a ler uma carta para cada dia. E tudo o que acontecia de ruim em seu dia, projetava em alguma figura escondida no canto da carta, até o dia que decidiu não sair de casa porque teve uma leitura de muito azar.
   Nesses tempos, começou a chegar atormentada às nossas jogatinas. Muitas vezes não conseguia um par para a canastra, fazendo com que eu e meu Rei de Espadas tivéssemos que jogar outro jogo, como pife ou buraco. E toda vez que, por obrigação, meu Rei de Espadas se oferecia para jogar em dupla com a Dama de Copas, para que ela não chorasse seus valetes perdidos, a bruma se fazia tão visível que ele se sentia triste por não poder jogar comigo. E parecia ecoar pela névoa o quanto ela remoía aquele primeiro descarte, e o quão mal ela disfarçava a angústia, trucando minha paciência.
   Após um tempo, a Dama de Copas e eu paramos de nos encontrar. E eu tive a sensação de que algo peculiar acontecia com as cartas dela, como se um número ou figura fosse malicioso o aterrorizado. Mas isso eu posso apenas supor. Assim como suponho ter imaginado enxergar na névoa a imagem de que nossos castelos de cartas, que antes pareciam firmes como laços, eram apenas castelos de cartas, que se derrubavam em meio à tormenta. E então não soube mais nada dela.
   Não até que um conhecido em comum comentou algo sobre o quanto ela se distanciou dos amigos e como ninguém teve notícias dela antes do internamento. Ele não disse muito, e eu não quis perguntar muito, mas os analistas diziam que ela não falava mais nada, que passava o dia escrevendo coisas ilegíveis - talvez amarrações ou feitiços? - numa carta de baralho. Eu não quis perguntar qual carta, nem quis perguntar nada a mais. Continuei seguindo meu caminho como se nada disso me atordoasse e me parecesse normal que ela tenha ficado louca. E talvez essa noite não fosse passada em claro se eu ousasse perguntar algo a mais.

domingo, 19 de abril de 2020

Você viveria de amor?

Porque as pessoas não vivem de amor,
Porque quando se tem fome,
Quando na escuridão
Do teu coração vazio
Brilha a chama
Do saber-se que ama,
Consome-se cada víscera etérea,
Cada tripa vazia,
A miséria devorando
A companhia.

E você, ousaria viver de amor?
Sem saber qual ocasião,
Sem saber de qual tripa
Fazer coração?
Sem saber se vai doer porque é sua
Ou porque não é,
Se todo o sangue derramado ao chão
É razão pra desnutrir o corpo teu
Seja ele o que passava por teu coração
Ou pelo meu.

Mas, quando o sangue tiver coberto
O chão,
Quando teu peito aberto
Pulsar a desnutrição,
Você se alimentaria da carcaça,
Viveria do alimento que já chamou sentimento,
Você viveria de amor?
Ousaria tocar nas feridas do amor?

Porque quem não vive de amor não ama
Não se ousa devorar a própria chama,
Mas viver de amor,
Mais do que escapar da morte,
Está além da víscera
E do corte.

Porque quando havia pão,
Vivemos de amor e de pão,
E quando houver sangue,
O amor ainda será como o pão,
E não se encontra carcaça,
Nem tripa,
Nem víscera
Onde se ousou viver de amor.
Pra viver de amor, há de encher de vida o amor, ou não se viverá.

Mas vivemos.
E se ao tentar, em meio ao desespero,
Devorar o amor para saciar-se,
O amor for feito de sonhos,
Não existe jeito de devorá-lo
Porque sonho não mata fome.
Exceto o da minha vó.
Mas de sonho se vive,
Se vive de amor.

segunda-feira, 9 de março de 2020

O homem que rasgava a luz da lua ao meio

   A enorme lua cheia amarelada no ainda diurno céu roxo não apenas se destacava de todo o movimento e beleza urbano transitando pelo campo de visão que era permitido pela janela de Francisco. Ela parecia martelar a vista, com sua robusta forma que se parecia impor à paisagem serena, oprimindo a sensação de que a tarde era agradável até aquele momento e dando aos transeuntes a sensação de que a noite ameaçava os afazeres ainda não cumpridos e que as ruas, lojas e luzes se fechariam em breve, deixando qualquer tarefa que fosse por cumprir e qualquer pessoa que ainda vagasse, sozinha. A enorme lua cheia amarelada no recente céu noturno havia paralisado Francisco em frente à janela.
   Havia uma mágoa profunda acumulada em seu coração, que vez ou outra atordoava os sentidos de Francisco sem que ele soubesse quando exatamente havia surgido, e que se pintava das cores do dia para não existir senão num pequeno canto recluso de seu coração e que se mascarava sob suas feições gentis, e a lua amarela sugava essa pestilência de seu coração para transformá-la na luz doentia que fazia Francisco refletir se, graças à lua, as pessoas que protegia de si eram capazes de enxergar no céu o seu desamparo.
   Como um espelho paralelo à mágoa, projetou-se refletido um medo de que o mundo enxergasse na figura de Francisco o monstruoso emaranhado de mágoa que seu coração bombeava a toda a extensão de suas veias. No ardente amarelo da lua, Francisco enxergou todas as coisas que escondia e das quais se envergonhava e todos seus atos falhos, e o medo que agora também era bombeado pelas veias fez seu pensamento se deixar tomar por uma raiva da lua cheia.
   Francisco fechou a janela com tanta força que seu pulso baqueou. Arrastou as cortinas pelos trilhos e atirou-se ao sofá, mas por baixo das frestas da cortina ainda podia ver a luz amarelada entranhar-se a sala, manchando o parapeito, o sofá e tentando grudar na sua pele.
   Mesmo após fechar os olhos, Francisco enxergava a figura sarcástica da lua invadindo seu imaginário, provocando-o a assumir todos os atos dos quais não se orgulhava. Francisco sentiu que a lua impiedosa não estava disposta a parar de castigar sua mente, e quase que num delírio decidiu correr até a lua para rasgá-la ao meio.
   Ao decidir levantar-se do sofá, seu pulso - que ainda doía - deu forma ao início da forma tátil mais bestial de seu desespero, e enquanto uma das unhas da mão era tocada pela luz não interrompida da lua pegava impulso para erguer o corpo, sua forma se alongou e penetrou a espuma do sofá, deixando uma cicatriz diferente dos arranhões do gato.
   Abriu a porta com o resto de humanidade que habitava seus membros, e após sair de casa todas as partes de seu corpo que ardiam feito doença com o toque amarelado da luz revelavam cicatrizes profundas de sua alma, e de cada cicatriz brotava um pedaço a mais de bestialidade na silhueta transfigurada de Francisco.
   Corria atrás da lua como se não soubesse que jamais poderia voar para alcançá-la. As mãos empurravam o chão para trás, dando impulso para que atingisse uma maior velocidade, mas forçavam sua musculatura diferente a fraquejar a cada galope.
   Foi apenas quando todos os seus músculos doíam que, perto do fim da cidade e da estrada que levava à zona rural, a lua olhou de volta para Francisco, que atirou-se para cima, tentando voar, caiu de volta contra o chão e aceitou que não haveria mais como se levantar.
   Num último esforço, Francisco estendeu as garras que partiriam a lua ao meio, mas quando a luz empregnou-se na pelagem da mão já não havia dor a ser ressentida. Olhou para seu corpo iluminado de amarelo e não parecia tão ruim assim. A luz da lua zelou até o fim da noite pelo frágil corpo atirado à grama e amparou as lágrimas do homem que não sabia mais por quê havia saído de casa, e o esquecimento transformou essa cena numa mágoa sutil, disfarçada pelas feições gentis e sorridentes do cotidiano de Francisco, uma mágoa acumulada que vez ou outra atordoava os pensamentos e que não era possível rastrear.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Parte dois, ou apenas "A mulher que procrastinação"

   O quarto era todo organizado para que qualquer etapa da vida fosse shortcuteada o mais rápido possível. Os livros na estante eram organizados de acordo com os tipos de necessidades, tinha tudo à mão. Sou autossuficiente, pensava. Sentia, como o estômago muitas vezes sentira o maltrato e como o corpo sentia falta de alguma substância vez ou outra, e, também, como sentia cada dia se findando como um a menos para viver, que era capaz do que quisesse.
   Os projetos de Lúcia se estiravam pelas luxuriosas listas de livros apenas abertos, e pelos ingredientes mais gourmet possíveis que encaravam o miojo entediados, e pelos charutos que vez ou outra aguentava fumar mais do que até a metade, e pelas manhãs não vistas ou não completas ao meio dia. Tudo era muito estático, e nem tudo tão elétrico.
   De forma alguma se sentia imatura. Adiar a vida, como pulava os prefácios dos livros e ignorava alguns ingredientes e guardava charutos cortados e esperava sempre as soluções do amanhã, era natural. E, a longo prazo, surtia o efeito de não gerar a mínima preocupação com o presente. Se morresse ali, esperando acontecer seu grandioso propósito na vida, tudo bem.
   Então vieram os lapsos. Quem notou foi a irmã, que conseguiu insistir em parar de adiar aquele almoço pra matar a saudade. Se fosse a cargo de Lúcia, seria amanhã. Escolheu aquele restaurante de comida japonesa barata da João Negrão, quase na esquina com a Marechal Deodoro. Aquele perto do prédio histórico da universidade federal. Passaram com o dia os hábitos preguiçosos, e quando a noite trouxe a sobriedade, alguma amiga da irmã perguntou o que haviam almoçado e Lúcia respondeu miojo.
   Tudo tinha seu início, mas o fim se dissipava em lapsos que poderiam ser de memória, apesar de parecer com algum limbo entre uma manhã e outra que roía inesperadamente o tempo. E talvez a partir daí a existência se tornou incomum, e a não inércia, paranormal. Como os livros tinham mais ordem do que curiosidade, e a comida, mais automação que criatividade, e o fumo, mais vício que prazer, e a vida, mais existência do que ação, tudo era bem delimitado, e as variantes eram pura blasfêmia.
   Alguma coisa ou outra aparecia em lugares da casa diferentes dos costumeiros, mas a obra do sobrenatural tinha outros atalhos para ser amenizada. E para cada vela que acendia em oferenda, projetava-se sobre a parede uma nova sombra a andarilhar e espalhar golpes cruéis aos seus olhos pela casa. Até mesmo o espelho foi tapado com um lençol velho para que as formas indignas de vida da casa parassem de se refletir sorridentes. Os deuses, e essa é a opinião da autora, deveriam misericordiar-se da alma penada que trazia tanta confusão e impedia que qualquer início se terminasse antes da paz mental.
   O fervor, nunca imaturo, de tentar manter os vícios e o cérebro condicionado, criava a ilusão do destino, e quanto mais a sensação grega de fardo humano pesava sobre a vida inerte, mais pesavam as lágrimas incompreendidas. Como sua mente tecia o enxoval de planos, os vícios desfaziam a concretude de cada meta, uma a uma.
   Mas não era louca. Bem sabia contar até onze, só não sabia a diferença entre o dia em que aprendeu a contar e a data adiada de hoje. E por conseguir passar do dez tinha a certeza de que seus planos inertes seriam todos grandiosos se não fosse pela assombração na casa, nem por aquela garotinha - talvez sua neta? - que não sabia contar mais do que os dedos, mas conseguia enganar a avó com uma moeda escondida atrás da orelha.

domingo, 12 de janeiro de 2020

O templo

Não tenho coragem de abandonar o templo.
Pela união
Dos vitrais iluminados,
Dos outros vitrais, escuros, escassos,
Que jazem na paz de seus estilhaços
Se narra a divina tragédia
Dos atos de mim.

Nos altares, trovo palavras ressentidas
Às minhas musas incompletas
Que ainda lamentam o templo
Como fossem musas proibidas
E vejo, de seus rostos, a escolta
Desejando que me vissem
De volta.

Não dá.
As paredes não cederam ao milagre,
Mas dá
Pra enxergar o rastro dele,
E eu juro, juro que o teto não vai desabar.
Pra reparar o alastro das rachaduras,
É atrás do altar,
Atrás de todo o mundo,
Num lugar onde tem que enxergar fundo.

O templo vai ficar como está,
Em respeito à religião.
A respeito da jarra que quebrou,
Tem amor esparramado pelo chão,
Pelas aves, pelos umbrais,
E até por corredores que eu não alcanço mais.

Eu juro, juro que nada mais vai cair.
O templo parece que trova por vontade própria.