sábado, 10 de setembro de 2022

Ode à necromancia

    O esquecimento é o único lugar onde a morte reside. Escrevo em luto pela Ísis, de quem eu apenas lembro de três coisas, e o que caracteriza o luto verdadeiro e que é o motivo pelo qual ele corrói e se aprofunda nas mentes das pessoas é que o luto é apenas um presságio da morte. Enquanto eu ainda lembrar uma coisa sobre a Ísis, ainda não existirá a morte. Também por isso me permito redigir essas palavras, na esperança de que, um dia, as lerei novamente, e haverá registro de que, um dia, existiu uma coisinha chamada Ísis. Ou talvez, algum dia, alguém que não eu leia essas palavras, e a partir delas, dê uma nova vida a Ísis em seus pensamentos. E isso me deixa contente, porque a Ísis merece uma nova vida.

   O presságio da morte atormenta todas as pessoas, em todos os cantos de todos os lugares, porque ao encarar a realidade de que em algum momento, alguma coisa entrará no esquecimento, a proximidade desse momento se torna tátil, e a importância da coisa que será esquecida pesa no coração. Não é uma previsão. Todas as pessoas têm a ciência de que todas as coisas têm um fim.

   Teve um filme que eu assisti no cinema com uma pessoa querida, na época eu saí da sala de cinema destruída e não entendia o porquê. Sentia, mas não entendia. Hoje, não sei se é mérito do filme, por ter propositalmente me feito encarar o luto, ou se o luto é apenas algo que eu enxerguei nele, mas essa é uma dúvida que não me atormenta e que não sanarei, porque decidi que essa é uma memória que não vale o meu tempo de assistir o filme novamente e depois refletir. É uma memória cujos detalhes não quero reunir a ponto de revivê-la ao máximo que me for possível.

   O filme me deixou de frente com toda a ficção que eu premeditava sobre o meu futuro com a pessoa querida, e me derrubou porque na ficção da tela eu enxerguei a possibilidade de que tudo aquilo talvez nunca nem acontecesse. Quando olhei para a pessoa ao lado, senti uma dor sólida, e acho que a sensação de que o meu coração parou naquele momento é porque de fato estive de frente com a morte. O inevitável fim de uma possibilidade. Eu não sabia o nome daquele sentimento, e talvez por isso não pude reagir de maneira melhor do que me rasgar num choro sentido. Aquele sentimento era luto.

   Não me julgo mal por pensar nessa situação com frequência. Não é, para mim, como um terrível apego ao passado que me consome. Todo segundo em que me descuido a ponto de esquecer de alguma coisa que vivi, é um segundo em que perco uma parte de mim, e assim me aproximo da morte, o inevitável momento em que já não lembrarei de mais nada, e portanto não serei mais eu.

   Apesar de que nada do que eu sonhava tivesse sequer acontecido, senti a dor da perda como se tivessem acontecido, porque todos os sonhos são tangíveis. Se não fossem, não haveria motivos para perder tempo sonhando. E todas as pessoas, em todos os cantos de todos os lugares sonham.

   A Ísis era uma gatinha. Cinza rajadinha, acho. De olhos claros, acho. Ela era dócil, carinhosa, e me lembro melhor do meu tempo após a perda dela do que do meu tempo com ela. Passei um ou três meses com ela. Esse foi o tempo que durou o meu sonho, e quando acordei já estava tão apegada a ela que levei um tempo assimilando a realidade até completamente entender que ela - e o nosso tempo juntas - existiu apenas em um sonho.

   Isso acontece com frequência comigo. Às vezes, quando acordo, fico presa a algum acontecimento fictício que sonhei com tanta verossimilhança que levo alguns instantes até entender que é ficção. Ainda assim, são momentos reais o suficiente para que eu considere que, de certa forma, os vivi. A minha primeira lembrança de uma ocasião dessas é de quando eu era criança. Acordei animada e saí vasculhando a casa procurando ovos de páscoa. Não era páscoa.

   Guardo, também, memórias que não tenho certeza se são fictícias ou não. São inverossímeis, mas não ouso concluir que isso as torne fictícias. A realidade é a que escolhemos, e a prova disso é que a felicidade está escondida em todos os cantos de todos os lugares, ao alcance de todas as pessoas e ainda assim algumas se agarram a ela e outras sequer a enxergam.

   O curioso delas é que sempre começam com apenas lapsos. Momentos em que algum pedaço do presente me conecta a alguma memória que eu já não revivia há muito tempo. E, aos poucos, essa memória toma forma e se reconstitui, e a sensação de lembrar é como dar novamente a vida a uma parte de mim que estava morta.

   Como, esses tempos, estava andando de longboard ou de patins. E a sensação do meu corpo fluindo por meio do movimento pareceu lembrar algo de muito tempo atrás. É verdade que eu patino desde os oito anos de idade, e que é capaz que eu saiba patinar melhor do que eu sei andar, mas essa sensação vinha de muito tempo antes de eu ganhar o meu primeiro par de patins.

   Um dos momentos mais marcantes da minha infância foi uma das primeiras vezes em que senti o luto. Eu brincava de saltitar pelas rampas da escola, mexendo os braços como se batesse asas, e acho que em algum momento entre a sensação flutuante de ter o corpo separado do chão e entre possíveis sonhos de que eu pairava por sobre as rampas sem nunca tocar o chão, adquiri a memória física de voar. Uma memória que, assim como as de conversar com o vento e com as árvores, não foi mais tocada desde o momento em que um menino mais velho - da antiga quarta série - interrompeu a minha brincadeira de cavalo alado e disse "Como você é infantil!", e eu, em luto, me sentei e percebi que já não era mais tão infantil assim.

   Mas, andando de patins ou de longboard esses tempos, a memória física de voar trouxe, amarrados em seus fios, minhas lembranças de pairar ou flutuar, assim como a lembrança de que todas as noites, antes de dormir, eu pedia ao papai do céu que me transformasse numa fada. Esta última ainda deve se conectar a outras memórias que ainda não consegui reagrupar, mas se conecta com o fato presente de que se eu me concentrar, se eu fechar os olhos e voltar a consciência para o meu corpo, eu consigo sentir as minhas asas. Retraídas, elas demoram e demandam para se abrir. Mas ainda consigo sentir.

   Teorizo que, assim como as crianças recém nascidas têm a naturalidade para respirar com o diafragma porque ainda não aprenderam a usar o pulmão, e depois que aprendem, deixam de respirar com o diafragma, existam muitas outras coisas que sabemos e que esquecemos, até o momento em que essa lembrança é trazida à consciência.

   Hoje, quando o vento passou por mim - e eu não estava pensando em nada, eu apenas observava o jardim - foi como se eu o ouvisse falar novamente, e me lembrei das ocasiões em que eu conversava com o vento e com as plantas. E tomei isso como eu sempre tomo o despertar desse tipo de lembrança: como a alegria do reencontro com alguma parte de mim antes esquecida.

   A primeiras memórias que tenho sobre lembrar de algo antes esquecido datam de quando tomei antidepressivos pela primeira vez, e de quando parei de tomar antidepressivos. Da primeira vez, quando eu me senti feliz pela primeira vez em muitos anos de angústia, fiquei extasiada por ter me lembrado de como era sentir felicidade. Eu tinha esquecido. Era uma felicidade artificial, hormonal e injustificável, mas me fez lembrar. Quando eu parei de tomar, foi quando eu já era capaz de sentir isso naturalmente. E nunca mais me esqueci.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

My most beautiful poem

Please accept
My most beautiful poem
And all the love I have hope in
If you can accept my care,
If your heart is still open
Or at least if I'm still there.

When I wrote
My least beautiful poem,
The reality was imminent
And five times ago
Everything was in war
Everything was too different
And I couldn't do more
Than write.

Beside
My most beautiful poem,
I feel pretty,
I found in many places
An amount of beauty
That begs me to share,
I wonder why does my love still wander
I wonder if my love would rather be elsewhere,
And if so,
I would love to be there.

I spread
My most beautiful poem
Through the wings of my blue birds
For I've got nothing more than these words
While you're rid of me,
Until you read me.

I bless you
With my most beautiful poem,
With the will
That you'll be warded by it,
With the love I still feel
When I ever observe you,
With the hope I'm enough
To deserve you.

You deserve
My most beautiful poem,
All the words I devote you,
All the worlds that were never real
Where I dreamed
Of me and you.

I give you
My most beautiful poem,
Contradict me if I'm wrong,
I give you my open chest
And a pair of arms
Where you can always rest,
Where you'll never be apart,
If that pain that doesn't fit in your heart
Can still fit in my embrace.

domingo, 10 de abril de 2022

Deusa de aquarela

Minha deusa paralela,
Hoje trago flores ao teu altar,
Sublinho em meu semblante
Teu sorriso sublime e incitante
A cada instante cru do teu
        [beijar.

Marcante deusa de aquarela,
Hoje venho a ti com sincronia
Do teu macrocosmo, a
        [preencher meu peito nu
Com tua cachoeira de lágrimas
        [felizes
Ao meu microcosmo a me
        [entregar a ti
Com a alma para além do
        [corpo;
Me recebe aquém da mente
        [tísica,
Além da metafísica
Do equilíbrio das dicotomias
        [inexistentes que és.

Ó deusa radiante que me
         [encara sedutora
Do espelho,
Já desfrutei tua rija carne,
Me deixei embriagar no teu
         [sangue
E venho a ti em comunhão,
Declaro um
Nosso coração
Que morre e desmorre
No tudo e nada a que toda a
         [entropia decorre,
Me tornando viva a cada
         [momento
Que grito
E voo
E sou um espírito vivo
No teu pensamento.

Deusa da minha psiquê,
Me foi concedido de tuas mãos
O dom
De ser a água debaixo do Buda,
E as camélias da árvore ao
        [lado,
E o vento que desvia de cada
        [carro
E brinca com meu cabelo
E apaga o meu cigarro.

E sou feliz ao ser tudo e nada,
Tão vasta quanta vaga;
E vago devagar,
Divagando teus pensamentos
Em cada rua indeserta que
        [percorro.
Dança comigo, ó deusa,
Minha clemência,
Insana consciência.

domingo, 27 de março de 2022

Esse pedaço de papel não existe

    Este pedaço de papel inexistente é meu refluxo. A única vida que posso dar a ele é parte da que me pertence, mas concedo-me. Porque concordo que vivo demais, mas também discordo de que a vida já não me cabe. Das vidas que vivo, milhões de vidas que sequer existiram, e também as que existiram, se posso registrá-las, continuarei vivendo em paralelo a todos que também as viverem graças a esse papel metafórico.

   Não quero que aconteça com tudo isso que já não cabe em mim e devo vomitar ao papel o que aconteceu com a Ísis. Já não lembro quase nada dela, exceto o impacto que foi na época sentir tudo o que senti por ela. Acredito que as vidas que nunca existiram são mais sujeitas à dismorfia que as outras. De certo modo, as que existiram deixam rasgos na realidade - por mais que nada não seja naturalmente sujeito a mudança - e renascem em marcas do passado e situações do presente, por minúsculo que seja esse tempo. Já as que nunca existiram são apenas histórias que se deixo que habitem apenas a minha mente raramente algum rasgo ou imagem me reconstroi uma memória profunda daquilo que vivi. Como a Ísis, que não lembro se tinha personalidade ou se apenas assumo que ela deveria ter uma. Como pensei que ela tinha olhos azuis ao tentar encontrar algo concreto na memória, mas depois me perguntei se não seriam verdes, e agora creio que eram talvez apenas claros sem cor nenhuma específica.

   Não acredito que existam mentiras, e tampouco que alguém me poderia envenenar com mentiras. As mentiras, as que inventamos conscientemente, são vida que damos à vontade de que algo fosse diferente de como é. E as que sonhamos, acordados ou não, também são experiências por onde nossas cabeças flutuam. Não há como me envenenar porque as crio toda hora, e portanto sei identificá-las, e sei também brincar como se as vivesse. Dito isso, testo a exaustão física de quem dormiu pouco, a mental de quem viveu muito e o significado ao papel que menti para tentar, no futuro, pousar a consciência sobre como foi viver a realidade semicosciente.

   Algumas coisas só se deve viver em falso. Me sinto em poder de tornar realidade muito do que sonho, mas a maior parte de meus sonhos é pequena demais para ocupar um poder tão grande. Talvez alguns não fossem se não coubesse a mim vivê-los. Talvez não fossem se você soubesse ler, investigar, procurar. Dar vida a tudo que se sonha seria um desperdício não só de poder, mas também de coragem. É preciso coragem para dar-se a uma existência, e é preciso também coragem para aceitar vivê-la. E eu não vejo ninguém fazer nada a respeito de nada. E o tempo, as coisas que existem de verdade, não se preenchem de vazio.

   Outras coisas se deve viver com tudo. E por isso não devo dizer mais nada, não ao papel que sequer existe.

Azoth

A lua líquida invade minhas veias,
Meu sentimento é tóxico.
Vielas de rotas meias,
De vícios e velhices mesquinhas,
As artérias minhas
Espalham, até a casa,
O arauto da miséria divina.

Há uma casa em mim que não é casa.
Eu nunca mais andei por aquelas ruas
Em que meu sangue fluía no trânsito
Das pulsações tuas.
Os grafittis alegram a fachada colonial
E o mato alto ocupa o trono
Tomando de volta a matéria da casa
Largada ao abandono.
Eu nunca mais virei aquela esquina
E me encostei no muro para chorar.

Há muito tempo eu senti tanto frio que
                    [fechei o casaco,
Sentei na janela
(Chovia),
Senti o olhar para o lado
E o frio não sorria.

Há muito tempo corri sozinha por aquelas
                    [ruas
Mais rápido até que o cansaço que sequer
                    [me alcançou
Eu corria feliz por estar atrasada
E ter desperdiçado olhando para o frio
Os últimos segundos daquela geada.

A lua bate cheia feito doença ou toxina
No corpo,
Bate pela janela da casa,
Ilumina o mato frio
Que pouco a pouco
Cura o vazio.

A lua cheia bate cinza,
Cochicha ranzinza:
Solidifica,
Solidifica,
Que há de melhorar.
Deixo que a maçaneta se gire,
Que a porta se abra
E a casa respire
O frio que vai congelar
Pouco a pouco
A luz dela,
Que invade o seguro
Oculto no escuro
Pela minha janela.

Talvez as ruas por onde nunca mais andei
                    [estejam intoxicadas pela luz
Ou eu esteja muito alheia,
Mas sei que cada rua
Não escapará da lua
Que me é fatal.

Esses dias, o calor
Rompeu o concreto da casa que não
                    [conheço mais
(Nunca mais tomei aquele caminho),
E virei o rosto, a implorar
Que meus olhos parassem
De queimar.

Um dia desses caminhei sozinha por
                    [aquelas ruas,
Saudei o ídolo de bronze ao lado de dEUS.
Eu andei devagar porque há muito tempo
                    [não andava por lá,
Como se o sangue fluísse devagar
Absorvendo cada centímetro
E cada toxina
E cada sentimento
Daquele lugar.
(A lua é líquida no maL que me fez
Por tantos meses,
Por tantas vezes)
E notei uma casa que pulsa vazia
E nas ruas dos meus braços
(E dos alheios), doía.

Todo mês vejo a lua cheia
Mordiscar pelas janelas
O interior da casa vazia
E, por um segundo, acredito que a luz
                    [solidificará.

Mas o resto é resto,
E pouco a pouco
Tudo é tomado pela folhagem,
O espaço volta
A ser paisagem
Até mês que vem
Ou até nunca.

O mercúrio, esqueço, nunca vai virar
                    [prata.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Decantação

Sobre as coisas que não significam nada:

   Levantei o rosto extasiado pelo toque ao corpo, desviando o olhar da companhia, voltando-o para o nada. À sombra que permeava o quarto, ainda poderia enxergar a forma do que quisesse enxergar se não tivesse dirigido os olhos, e também a mente, para nada. Não estavam fechados. Ainda havia algo frente a eles, algo tão impeculiar que não faria diferença olhar ou não olhar. E com os olhos desconectados das formas ternas - e da existência de mais alguém - desfrutei meu prazer egoísta, onde éramos apenas eu, a satisfação corporal e mais nada.
   Não deveria significar nada. Não deve ter parecido nada. Agora distante de meu êxtase, fito meu corpo com apatia. Não pela aparência, pois é esbelto, mas pelo desperdício. Meu corpo é versado nos rituais, é também funcional. Meu corpo conhece a elevação, mas não a busca. Se conforma com conhecê-la e deixa de se empenhar em buscá-la. E se deixa controlar por minha mente conturbada.
   Sorrir em retribuição. Levantar o rosto, desviar o olhar. Sentar. Levantar. A mente conduz meu corpo numa dança precisa. Da mecanicidade dos passos que masterizo à inclinação de ângulos precisos para seguir o roteiro traçado, feito marionete. Executa os passos que dita a mente. Permite-se. Mas não se entrega.
   Existem memórias abstratas que minha mente conecta ao corpo, e todas me esvaziam dos roteiros que redigi e cujos atos nunca pude finalizar. E mais marcantes que o toque ou que o orgasmo são os fragmentos de memória fluindo cada vez mais belos e disformes para fora do plano onde um dia fui capaz de projetar visões. O tempo os suga como uma bactéria que decompõe meu cadáver, lembrando que em algum momento, assim como a perfeição e a beleza da memória, também inexistirei. Tento preservar as memórias como fragmentos, remoendo que minha visão quase sempre prevaleça ao tato.
   Exceto por quando levantei o rosto e voltei o olhar para nada. Não vi feição nenhuma que me desgostaria esquecer. Não vi as formas de corpos projetados na parede à meia luz. E não ouvi as palavras que não devem ser ditas na cama. Não tendo em que pensar, minha mente abriu mão de controlar o corpo, e este, desimpedido, se permitiu entregar e sentir com a atenção que não deveria dividir com mais nada.
   Fito meu corpo com apatia porque, ao tomar o controle de volta, eu o desperdiço.

Sobre as coisas que significam:

   Minha mente delira ao calor de uma febre inexistente. Tudo aquilo de que desviei o olhar no calor do momento é confortante e também intrigante. É agradável como companhia, é estonteante como personalidade.
   O corpo é fácil. Mas, a mente é incapaz de ter controle de si mesma, e ela agora toca as nuvens com gosto e apreensão, pois já conhece a sensação de cair. E me permito continuar subindo. Isolo os acontecimentos simples, menos fervorosos, e ao analisar com cuidado, são todos ternos. Mantenho o corpo a distância por poucos parágrafos apenas para certificar-me da veracidade da paixão. Procede.

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Poema para despertar as abelhas

 Porque as vi zanzando

Aquele dia,

Por sobre a floreira, profetizando

Minha maldição derradeira,

Como minhas centelhas,

As abelhas diziam, ornando a flora

Tudo o que sentirei

Para além de agora.


Agouros outrora,

Voavam desparelhas

Por flores vermelhas,

Marrons depois de passada minha hora

Quando me acometeu a insensatez

De acreditar nas macias

Zumbidas profecias

Pela primeira vez.


Guardarei para sempre a imagem

Da abelha solitária, ao voar

E pousar no meu copo

Numa mesa de bar:


Ao romper o medo

Daquele que me acompanhava,

Ofereci o dedo

E quando ela pousou, indefesa,

Arauto de minha sorte,

Cantei sua beleza

E previ sua morte.


Porque o universo a trouxe ao meu dedo,

Cobriu-me como pólen

O desejo zanzante,

O lampejo febril

Pelos toques profanos

Que ecoa por anos após aquele abril.


As abelhas em meu estômago,

Por inocente que fosse devorá-las nos tempos idos,

Vez ou outra me conectam a ontem

Pois ainda rompem os meus tecidos.


Enfeiticei minha vida de abelhas

E por isso me assombra o que ainda pode vir,

Pois o encanto dos versos

Que ainda canto

É que as coloca para dormir.


Porque as vi zanzando

Aquele dia,

E já não mais cantavam minha elegia,

Tú, que cruzou minha trajetória,

E a quem narro

Minha história,

Ainda leigo de minha maldição,

Me oferecestes feito enxame

A possibilidade de que talvez ainda ame

Ao tocar minha mão.


Desperto agora as abelhas,

Com o devido medo ou respeito,

Porque abril ainda era cedo

Pra ferroar meu peito.


Porque tens traços suaves

Dos lábios à sobrancelha,

Tenho um cuidado, carinho esse

Feito o dedo a uma abelha oferecesse

Pois és hoje beleza,

Amanhã não sei se dor.


Temo por meu estômago,

Enquanto procuro a efeito do peito torpo

Teu calor febril,

Teu perfume que já se esvaiu

De meu corpo.

Temo mas não mais prevejo

Arriscar um palpite

Que não teu beijo.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Sábata

   A dor era insuportável. Sobretudo, a física. Sábata comparava, em sua imaginação, a situação em que uma variedade de lâminas de navalha se alojava em pontos diversos de seu corpo: Deslizavam e cortavam fácilmente os tecidos que tocavam, ora como consequência de um movimento, ora como castigo da gravidade.

   Não bastasse a dor física, a lembrança de seu prazer mais vicioso atormentava sua psiquê. Sabia que não poderia repetí-lo novamente, não tão cedo. Mas, a cena que ocorrera há pouco mais de um mês ainda impregnava sua fantasia, visto que era uma visão mais deleitosa que a das paredes que não podia deixar para trás. E o banquete... Foi, de longe, o melhor de sua vida. Em sua mente, ainda se lambuzava das coxas de carne macia e suculenta. Devorava a refeição de forma ansiosa e compulsiva, como se tomasse de volta o sustento para um corpo que estivesse, e certamente estava, desgastado.

   Também sentia culpa, uma culpa disforme perante o olhar do bom senso ao compreender a motivação desta. O tempo não passou, fluiu, no último ano. E Sábata certamente não o sentiu, não deu o devido valor. Agora, o valorizava, porque a dor infernal que impregnava seu corpo era um emaranhado de gritos que ela não tinha pregas para dar som, atormentando a finada paz que precedia esse momento, nos muitos - que agora eram poucos - meses em que a dor não a atormentava.

   Vez ou outra tentava pensar em outras maneiras de contornar a dor, mas nenhuma soava tão coerente. Ao menos, não enquanto fosse a gula a tentação mais sonora. Pensou em autocirurgia. Em talvez remover, por conta própria, suas navalhas imaginárias, para que nunca mais o corpo a castigasse de tal maneira. Também era a morte uma utopia sedutora. Todas as opções convencionais não lhe surtiam efeito, e as imaginadas eram impossíveis devido a seu estado atual.

  Talvez pudesse - devesse - solucionar a dor da mesma maneira de antes. Afinal, toda a trajetória era repleta de prazeres. Os da carne, o fim temporário do sofrimento, a carne. E tomou uma decisão.

   Sábata aproximou-se da porta, e por onde se permitia olhar para dentro de onde estava, exibiu-se.

- Moço!

- Cai fora, doida! - Respondeu o guarda, com desdém.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Conhecer

   Uma figura caminhava perto do local do incêndio. Não o tinha como objetivo - pois o desconhecia -, mas talvez como destino. Também pouco se fazia notar o rastro deixado pelo fogo. A quem o conhecia, nada era alarmante ou perigoso. Ou ao menos, não mais. Hora havia sido ardente, como uma labareda espalhada pelo vento. Ao último momento que foi avistado, minguante, como a chama de um toco de vela lutando para não afogar-se na cera. Mas a figura, em seu trajeto, parou. Não pelo fogo, pois não o tinha visto, nem pela pilha de carvão, pois pouco a cativara.
   Uma mão se erguia sob os pedaços de carvão. Suja, empoeirada, macia. Arrancava lasca a lasca da matéria queimada que a envolvia, fossem elas mais uma urgência que um fardo. O peso dos dejetos consumidos pelo incêndio pouco podia impactar a certeza na mão que emergia para removê-los. O preto da fuligem não conseguia cobrir por completo o rosado da pele fresca da mão, que já se tornara um braço. Enquanto removia as lascas, borboleteava vez ou outra pelo ar, tateava os arredores, como se sentir a brisa fosse não mais, porém tão urgente quanto a sede de emergir por completo.
   A figura aproximou-se, e enquanto a mão que pendia do braço tateava o mundo, se deixou tocar. A mão pareceu reconhecer uma forma, e como se fosse tão importante quanto o ar, os arredores e a necessidade de remover o carvão, se deixou, por quase que um minuto, repousar sobre a mão que lhe foi oferecida. Então, a guiou por sobre os dejetos, que deixaram de ser uma urgência ao ser tocados pela gentileza.
   E aos poucos havia, onde houvera carvão, outra figura. Suja de fuligem, que a ornava feito sangue fresco, mas não podia lhe esconder a pele macia e avermelhada, sensível, exposta, que novamente experimentava o mundo. Seus olhos se abriram, ígneos, para tocar feito nunca o houvesse feito toda a luz e cor que existe, toda a forma, como a forma gentil de outra figura que lhe contemplava ao lado.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Disjecta Membra

O quanto de ti ainda pode se perder,
Se mesclar ao desconhecido
Sem que teu corpo e essência
Percam sentido?

O pranto faz parte
Ao te esvair
Do que havia
E que te fez parte e já não és
E é agora febre
Alegria da qual não és alegre.

Ela agora te reparte
E em gotas refletes tuas quimeras,
Debates,
Ponderas
Em que gotas titubeias,
E que gotas
São alheias.

O quanto de ti sobra
Após te desmembrares
Dobra a dobra ao desalento,
Em fragmentos preliminares?

domingo, 9 de janeiro de 2022

Letter #2 from Erika to Mr. W.

 My beloved W.,


It would be unfair to assume I'm unable to have feelings because of my... Condition. I didn't expect an answer to my letter because we were endangered, for you'd always been the only effective way in which someone could really hurt me. And still now that I can send you a proper letter, we both know there'll never be such a thing as a safe ground for any contact between us. Not unless you let me... Actually, never. You've already gone through a lot and I can't let my whims make you suffer more than you already did.

Truth is I can never be sure of my feelings. At least, can't figure them out on my own. And I'm telling you this because you're somehow connected to most things that attach me back to existance. I'm not proud of it, and I will understand if you hide and fear me for telling you this, still I want you to know. Truth is whenever I feel hunger, when I'm desperate and can't move my mind away with any other thought or idea, I think of you.

I remember that day. Bleeding drops of red laid on the floor of your room. Still I didn't have this condition, but the idea of maybe losing you - and I'm grateful I didn't - recorded the image of those drops of your blood in my mind as the beautiful picture of when my death began. The melancholic goodbye of a person who needed to die to start living. It's beautiful because I, now, kind of live. I kind of enjoy my condition. And it's all happened because of you. Because of your blood.

As you obviously aged, do you enjoy the life - the path you chose? I don't truly believe our paths could ever be excludent, do you? I'd like to understand what am I still able to feel, and only you can help me. I think you do not fear me, the same way I couldn't fear you back then. And now some shit ended and we're kinda safe. If you're smart enough, if you can still read me - and I truly believe you can, otherwise wouldn't be writing you another letter -, there's clue enough from what we lived for you to track me from this letter.

With some of the memory that remains me,

Elise,

Whom you've learned to recognize through multiple names.




quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Backyard

Been looking at a blank paper, wondering,

Like I wonder about life,

And I do wonder a lot,

And remain silent between my pages

Reclude my mild spark for ages

I control every thought

I allow myself to have

Even though after each cigarette

Silence punishes me

With regret.


Like putting a word to the paper,

I dispose of the weight

For I stared for a long time,

For I spared me of each rhyme,

For I know it's too late

To wait for something to happen,

And to weep

Every word I keep,

Pointless as could be,

For everything's already been said

And still silence tortures me

Inside my head.


Like the coldest fire trying to survive while it rains,

I do something,

I write a poem,

For that's what remains

For me to do,

I can only write a poem,

Between every verse of my silence

Can you still read me?


The world is my backyard,

To explore, too many rooms

And still

Not a rose blooms.


When living your own life,

Are you upset with the routine?

Do you regret

What hasn't been?

Do you scream your heart out when it begs

For shelter

Between someone's legs?


I write a poem.

It's too late to wait for something to happen,

Do I waste you like you waste me?

We're getting old and complacent

Of routine, quarantine,

Would you taste me,

With the thirst of all the times you did

On the times I made it up?


For the world is my backyard

It's open to be seen,

To care for flowers,

Tidy up all the green.