terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Da porta para fora

  Desviou a pisada da tábua que range que fica depois da mesa e antes de chegar ao grande armário do casebre. A estrutura de madeira e o calor vindo das duas pequenas janelas, pelas quais mal podia entrar a maltratante luz árida do sol, transformavam o casebre de um cômodo em um forno sujeito ao clima árido semi-desértico do lado de fora.
  O cachorro pulou da cama até a tábua anteriormente evitada, que fraquejou, e ao ruído se misturou o latido enérgico que sabia que quando ela abria o armário, era sinal de que estava na hora de comer.
  Ignorou o barulho irritante da tábua e analisou o conteúdo do armário. Dá pra sobreviver pelos dois meses até que a mulher volte, pensou, e a ideia de que em dois meses teria que abrir a porta novamente para a mulher do estoque a deixou com uma leve tontura apavorada.
  Se apoiou em uma cadeira para que as pernas não cedessem, mas só conseguiu se acalmar no momento em que o cachorro choramingou e a cutucou com o focinho. É claro, amigo, você quer a sua comida, não? Abriu uma lata e a deixou ao lado do canino, que a limpou abanando o rabo. Bom garoto.
  Se serviu de sua porção humana, comeu e foi se deitar. O evento de dali a dois meses atormentou toda a parte lunar do dia, e o sono se deixou substituir por um par de bolsas de inchaço sob os olhos e muitos pares de reviradas na cama.
  O estoque diminuía com regularidade precisa, e a comida que às vezes sobrava já era suficiente para mais dois dias ao fim dos calculados dois meses.
  Foi quando faltava cerca de dez dias para o momento de abrir a porta que elas chegaram. Lúcia abriu o armário no momento da refeição, como o fazia três vezes por dia. O cachorro pulou da cama até a tábua que rangia, e foi só quando ouviu o uivo e o patejar desesperado do amigo que ela percebeu que dessa vez a tábua havia cedido. Largou a comida em qualquer lugar e puxou o amigo com a rapidez que pôde. O cachorro correu para debaixo da cama sem tocar na comida,  e não se atreveu a sair pelo que pareceu muito tempo, enquanto ela ficou a analisar de cima o vão de um metro entre o piso do casebre e o solo.
  A falta de luz no subsolo a tranquilizou, pois significava que não poderia haver comunicação com o mundo exterior. Começou a examinar a tábua partida para imaginar algum possível remendo. Um fedor nauseante de mijo e poeira vinha de baixo. Observava a ranhura na madeira quando, de súbito,  algo também vindo de baixo tapou sua visão.
  Seu rosto sentiu o arranhar de pequenas patas e o golpear aveludado e irregular, como se nele houvessem ranhuras, de uma centena de asas. Um líquido quente lhe conseguiu penetrar os olhos antes de que terminasse de vociferar o grito e empurrar a criatura para longe do rosto.
  Limpou o que pôde do líquido e abriu os olhos, que ardiam, e dos quais escorreu uma espuma opaca. Ao olhar para cima, o teto do casebre estava repleto de mariposas marrons, muitas delas mimetizando nas asas pares de olhos de animais.
  Olhou para as janelas. Nunca havia sequer mexido nas pequenas frestas por onde entrava o ar que impedia que ela e o cachorro morressem sufocados, e altas o suficiente para que ninguém da porta para fora pudesse alcançar. Para que as mariposas fossem embora, teria que abrir, devido ao tamanho padrão delas, uma fresta de no mínimo vinte centímetros e deixá-la aberta até que as aladas tivessem a boa vontade de deixar o recinto.
  As repugnantes mariposas permaneciam no teto, vez ou outra movendo suas asas e fazendo parecer que os olhos se moviam. Olhou para as janelas. Olhou para a porta. Tateou até a maçaneta e a chave para se certificar de que estava bem trancada. Estava. Se não fosse pelas asquerosas mariposas, teria sentido alívio ao checar a tranca. Nada, nem mesmo as mariposas, poderia ser tão assustador quanto o que havia da porta para fora. Decidiu não aumentar as frestas da janela.
  Incomodada ao extremo com as novas presenças, voltou ao armário, pegou sua comida, engoliu rápido e foi se deitar. Seus olhos ainda ardiam, mas Lúcia os manteve abertos, fixos às criaturas do teto, pelo tempo que pôde. Então, uma sensação desconfortável tomou conta de seu organismo. O calor pareceu se acentuar e o ar fétido era, a cada segundo, menos respirável, e a língua pareceu inchar. Uma dor na barriga a levou à conclusão de que a comida deveria estar estragada, e por isso lhe fazia mal. Em determinado momento, a dor na barriga se deixou aliviar num tipo de diarreia espessa que se espalhou plela cama. Durante uma oscilação de tempo, tudo o que viu foi o bater de algumas asas, piscares de olhos e formas estranhas.
   Lúcia acreditou ter ouvido alguns choramingos, e uivos, e latidos que cada hora pareciam mais fracos. Não teve forças para se levantar, mas sentiu as lambidas do cachorro que parecia se alimentar da diarreia espalhada pela cama. E então, acreditou ter ouvido aquilo que mais temia: as batidas na porta.
  NÃO ESTÁ NA DATA COMBINADA, AINDA FALTA UMA SEMANA. NINGUÉM VAI ENTRAR.
   Lúcia passou os próximos oito dias delirando com asas e olhos, e acordou de súbito enquanto bebia um copo de água.
   O fedor da casa dava ânsias. Estava magra, e a comida havia acabado. As mariposas haviam sumido do teto. Procurou desesperadamente, com medo de ter enlouquecido, por todas as paredes, mas elas não estavam mais lá.
   Foi quando olhou para baixo da cama que as viu se alimentando do raquítico cadáver quase em ossos do cachorro e de seus dejetos. A arcada dentária, visível sob a pele carcomida pelas mariposas, ainda estava suja de merda.
   Passou um dia a vomitar pelo cheiro, sentir fome e medo de abrir a janela para se desfazer da ossada do cachorro, até que chegou à conclusão de que teria que maldizer o atraso da senhora dos mantimentos e se alimentar até que ela chegasse.
   Então agarrou a primeira mariposa. O inseto quase a sufocou ao tentar bater as asas e cutucou asquerosamente sua língua com as patas. A textura aveludada e amarga parecia golpear o céu dá boca. Mastigou aquele bolo de patinhas e olhinhos pelos minutos que precisou para criar coragem de engolir junto com a bile que seu aparelho digestivo tentava expulsar para, em vão, impedir que ingerisse a repugnância.
  A mulher que trazia os mantimentos já havia deixado o lugar considerando interná-la em alguma clínica para gente com o mesmo tipo de problema. Mas, depois de a equipe conseguir arrombar a porta, tudo o que encontraram além dos ossos do cachorro, foram as mariposas e um cadáver, do qual se alimentavam, malcheiroso, com a carne roída e os olhos vermelhos e cheios de uma espuma opaca que levaram da porta para fora.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O homem nos meus sonhos lúcidos

Teu lado da cama, teu rosto,
Me veio em presença disforme.
Em silêncio e ausência e vigília,
À sonolência do corpo, o coração não
                    [dorme.
À exaustão do corpo, o alpha
Noutro plano se projeta
Até encontrar o teu rosto
No meu mais profundo beta.
E dormir com a imagem clara do teu peito
                    [abraçando minhas costas,
Foi a média tentação
Beirando de um lado a lembrança
E do outro, a premonição.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Recanto

Como um flagelo de vida
Que anda pelas ruas
Conhecendo lugares vazios
Como o curso de oceano
Que flui pelos meus rios
Eu era submersa
Num muro de mim
Em cada conversa.

Como uma pedra de gelo
Derretendo meu fogo
Eu me sinto em paz
Sentindo o bem que você me faz
Submergindo do fictício,
Amo tuas feições, teu amor, teu feitiço,
Meus finos flagelos de gelo
Descobrindo a superfície.

Como um abraço quente,
Você me despe da carne
Eul só os teus braços confortam a minha
                    [alma,
Que é como um quebra-cabeça,
Ou como as estrelas,
Que só se alinham no fundo o teu olhar.

Eu não sei me portar diante dessa luz
Como não sei medir o quanto te amo.
Tudo em volta parece falso,
Menos você, meu conforto,
Meu círculo de amor
Centrando o caos.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Pagu

   Para a autora, o nome era primordial, portanto, um ou dois nomes universais para todos os personagens eram bem cabidos. Mas ainda assim, acima do nome está a crônica, e para eles, que são aquele empurrãozinho que às vezes falta de escrever, essências pútridas das linhas que bem poderiam não existir, o nome não era importante, desde que se fizesse questão de demarcar que a protagonista era uma "ela".
   Ela lembrava bem da cara do pai quando chegou em casa e a viu toda pronta. "Vai sair?" quis saber o pai, já constatando a resposta."Vou", respondeu. Havia esperado o primeiro sol depois do inverno para vestir a personalidade sensual e misteriosa, descoberta em lugares estratégicamente provocantes e não deixando a mostra nada daquilo que preferia desfrutar em íntima privacidade.
   Feliz portadora de um corpo e tanto, ela saiu com o corpo e o amor, e enquanto raiava o sol, foi toda corpo e toda amor. Porém, como são todas as mulheres de personalidade sensual bruxas, e são todas as bruxas filhas da lua, à primeira instância da noite a bruxa deixou de ser amor e corpo e se tornou poder e alma.
   Almejava mais que tudo o poder. O poder de caminhar com o queixo erguido, o poder imenso do rebolado do corpo provocante quase imperceptível entre o negro da roupa e o da noite, o poder ser só bruxa e alma e noite, o poder chegar em casa sem menos poder, nem menos roupa, nem menos corpo.
   Até que viu, numa das ruas sem saída que atravessava pelo caminho, um grupo de cinco "eles" que, somando as idades, não se chegava a 65, pedalando devagar em seus instrumentos que eram como extensão do instrumento. Continuou andando, mentalizou o poder da lua e nada de ruim poderia acontecer. Até que depois de ver, ouviu.
   O "psiu" e o "ei, gata" se fizeram ouvir mais baixo que os barulhos das correntes de bicicleta. E tão baixo quanto são baixos cinco "eles" perante a lua. Baixo como são baixos eles que precisam andar em cinco. Tão baixo como é baixo o ollhar de quem enxerga corpo, mas não enxerga alma e poder.
   A mão que soltou do guidão para apalpar a bunda era só uma mão, e aquele "ele", só um corpo, enquanto ela, bruxa e filha da lua, já era alma e poder e feitiço.
   Ela continuou andando, poderosa e com o queixo erguido, bruxa, e sabendo que sabia ser amor, e muito mais do que só corpo como era apenas corpo aquela mão após o toque. Chegaria inteira, chegaria bem.
   Até que o feitiço surtiu efeito e, a três metros de onde a bruxa estava, a lua devolveu a moléstia e derrubou a correia da bicicleta do último dos cinco "eles". "Ela" sorriu, e os outros baixos que eram ainda mais baixos tendo um elemento a menos, aceleraram a pedalada e sumiram longe.
   Cinco passos bastaram para que ela, ainda sorrindo, se aproximasse do moleque caído que até tentou fugir, mas não conseguiu arrumar a correia.
   E sorrindo, como sorria a alma muito maior que o corpo, bruxa, ela perguntou:
"Você se machucou? Precisa de ajuda? Quer que eu ligue pra sua mãe?".

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Geada antiprimaveril

As borboletas voavam longe.
Feito nome de anjo se ouvia
A dança alegórica semiaustera
Anunciando à ventania:
Vem chegando a primavera.

Aos votos que sobe o sol
Ao doce alvorecer
A vontade do oceano
Se vociferou de florecer.
Seu nome é de demônio, insistiu,
Água mole em pedra dura
Tanto bate até ceder.

Eu sou assim:
Toda corpo,
Toda cor,
Encorpando ao feitiço
O acordo omisso na minha dor.

Inverno após inverno,
Passa o tempo e eu sentada
Esperando florecer.

Mas sou assim:
Toda a torto,
Toda ator,
Incorporando meu grito omisso
Em todo botão de flor.

Meu coração é assimétrico,
É assindético,
Sintético, sem nexo,
O meu corpo, convexo,
E o plexo,
Meu cemitério de borboletas.

Só sei amar e escrever.
Misturam-se em meu sangue
Esse não saber tão pulsante
Entre a ferida aberta berrante
Que me faz aberração.

Era mais fácil quando eu só sabia escrever.

Vou ouvindo o oceano
Engolir a primavera,
Digerir as borboletas,
Ainda não é tempo.
Agente do meu aparto esbanjo
É meu nome de anjo afastado ao eterno
Do segundo primeiro dia de inverno.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Lágrimas de uva

Uma silhueta se deixa derramar sobre a
                   [minha parede dos fundos.
É inesperada,
É desesperada,
É desumana.
Trôpega ao inequilibrar suas formas,
É uma silhueta narcisina,
E invasiva
E masculina.

Um ego mimado,
Arquetípico,
Arquejado,
Arrastando-se de sombra em sombra na
                   [minha parede
Narciso inconciso,
Cansado
E com sede.

O álcool na minha boca não é licença
Pra sombrear-se esse vulto alcoólico
Fedendo ao vinho mais barato da
                   [dispensa.
Nem a necessidade de barulho
Do disfarce maltrapilho,
Pedante,
Insignificante
É mais importante que a paz do meu
                   [silêncio.

É vulto de amor barato,
Destroçado,
Distorcido,
Chorando suas lágrimas de uva
Feito estanco
Vertendo podridão
No meu tecido branco.

Esse amor insatisfeito, invasivo,
                   [imperfeito,
Não é amor,
É projeção que se esconde,
É sede,
É um vulto atirado
À minha parede.

Não vou assumir sua taça
Desprotegida,
Estilhaçada,
Espairecida
Como se amor significasse a sombra
Ou significasse cada lágrima derramada
Ou significasse,
Ma(i)s nada.

domingo, 10 de julho de 2016

O véu de Valquiria

É tão estranho mostrar meu rosto... Eu, que tenho sido uma sombra terrivelmente apaixonante, um lobo mascarado, um martírio suicida.
Deixei-me sucumbir a uma ridícula paixão adolescente ou simplesmente cresci? Talvez ambas as hipóteses sejam válidas.
Ela nunca me quis morto, quem o quisera era eu.
Valquíria talvez me tenha amado. E ela nunca precisou de nada senão de palavras.  Refiro-me àquele tipo de rima apaixonada que em métrica exata comovia o mais frio coração (leia-se o meu coração).
E talvez de sua carne não se tivesse saciado meu ódio quando encontrei seus olhos, ternos e temerosos, sob o véu negro do mistério que a envolvia.
Seu nome, desconhecido, enegrecia aquele véu do diabo, enquanto seu toque,  abstinente de alguma resposta, selava-o agora a minha face, uma vez que o rosto da dama se deixara revelar.
E eu, nos braços de Valquíria,  apeguei-me ao disfarce de lobo mau quando por dentro ela me fizera sentir um mero cordeiro. Adicionando uma dose de realidade, por dentro eu era uma ovelha negra.
Eu tinha aquela rebeldia jovem, o espírito ateu moderno,  a vontade de não mais ter vontades. Eu tinha a mim, a Valquíria e a meus pensamentos suicidas.
E como que por dó de mim o suicídio nao tardou a responder-me.
A bofetada que partiu de minha mão dirigia-se ao rosto, mas foi interceptada pelo véu do sigilo de Valquíria.
Aquele véu... Maldito véu. Mal-dit-o-véu. Malditos véu, máscara, pele de lobo, rosto oculto. Aquele era o véu que me impunha respeito, mistério, temor, mas essa admiração não era imposta por mim, e sim pela dama que tecia o véu junto à sombra de minha mente.
Então, deixei que meus olhos se enchessem das mais odiantes lágrimas e cuidei para que a raiva borbulhasse pelos dentes lupinos que traziam-me à realidade.
Não que ela me quisesse mal. Ela entendia que assim que alguém quebrasse meu anonimato eu já não seria mais aquele espírito jovem.
Eu certamente a perdoei.
Mas seria impossível perdoar a mim mesmo com aquela seda vexaminosa.
Com um golpe rasguei o pano preto da vergonha. Abracei a morte. Larguei a pele. Deixei Valquíria. Apesar de sentir-me inseguro, mostrei o rosto.

domingo, 19 de junho de 2016

Todas as cores do escuro

Tinha medo das luzes e do peso dos
                    [cabelos:
Agora, mais nenhum fio tem a marca dos
                    [dedos,
Só algum suspiro de reflexo
Que espelhou o anoitecer
Ou o lamento desconexo
Que cada vez mais se quis desconhecer.
Quanto mais andava à sombra, menos a cor aparecia.

Tinha medo das luzes noturnas
Que embonitavam a noite.
"Ô, menina, mais bonito é teu sorriso,"
Ouvira em tom liso
Ou virou mesmo é uma louca.
As cores! Sim, há algo a misturar nelas
Que se destacam na luz pouca.
Ainda é luz, menina, ainda é vida.

Vestiu aquela imagem como se
                    [projetando na alma
Não estivesse almejando
Ou se na pouca luz míope
Enxergaria alguma face
Ou se o novo casaco a disfarçar o frio nos
                    [ombros
Também não pesasse.

As mesmas luzes ainda revelavam
Aquele cansaço que a ela escorria
Desde o luar, já não reflete mais
O frustrante fardo da tela vazia.
O rosto era líquido como os olhos tristes
Que vertiam o azul de uma aquarela suja.
Tinha mágoa das cores de fundo de nada,
Da garota do espelho,
E de sua cara de preocupada:
Eu não vejo cores,
Eu não vejo a mim,
Eu já nem vejo,
Só deixo borrar.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Haciaré

Hasta el cielo
Hundirse a la cabeza,
Hasta el morir del pensamiento que me
                    [empieza,
Pensaré.
Hacía marcarme el viento,
Libre como soy hacia el cuerpo
Y fijo hacia mi cabeza.

Hasta los infiernos
Hundirense a mis pies
Como las raíces de los cerezos míos
A doler en mi fuego de colores fríos,
Me solerá el tiempo,
Me lunara todo lo que existe,
Todo lo que es daño,
Todo lo que extraño.

Soñaré,
Firmaré.

Hasta el cielo
Hundirse a los infiernos,
Haciaré.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Bis Morgen

O passado é estático.
Eu não creio no futuro,
Nem em qualquer projeção estética
Nem surrealismo imprático.
Bis Morgen,
Depois de agora existirá o limbo.

A gente não tinha coesão,
A ferida se abria,
Eu só não queria
Dar os pontos,
Por suas abrangências,
Nem vírgulas,
E dei reticências.
O chamado soou, eu tinha um pé no
                    [barco,
Vi a espuma confusa em meu Leviatã.
Bis Morgen, pensei,
Eu não acredito no amanhã.

Eu queria um jeito de garantir
Que aquele corpo era seguro,
Que havia futuro.
Eu sabia as respostas,
     (Você não vai me dar tchau direito?)
Eu virei minhas costas,
E quando me dei conta de que seria a
                    [última vez,
Aquele corpo inseguro,
O meu porto perjuro,
Andava de costas, vestia uniforme
E eu não tenho uma última lembrança
Daquele olhar.
Quando me dei conta e virei para trás,
Disse o corvo: nunca mais!
Bis Morgen, tive raiva e não disse.

Nunca disse nada:
A tristeza,
O desconforto,
A saudade,
E como se nunca tivesse amado,
Eu não disse.
Eu não acredito em futuro que não o
                    [torpor.
Bis Morgen, todos os dias adiando a dor
Transformando em limbo a solidão
Que habita o torpor entre o meu passado
E a minha paixão.

O presente é vivo e inadiável.
Deixa o futuro que te aborrece ser menor
                    [que o meu abraço.
Você nunca vai apagar a minha dor,
Mas a tornou pequena,
Quase amena,
Inferior.
Me ajuda a retribuir, porque quero dizer:
O amor existe,
Eu te amo,
Como se nada nunca fosse triste
Desconfortável,
Nostálgico.
Me diz: Bis Morgen, mein Herz,
Porque vai ser um limbo viver sem você
                    [até amanhã.

E vou dizer tudo,
Vou dizer desesperadamente,
Porque sinto demais,
Ressinto demais
E não quero sentir muito:
Eu te amo.
Vou sentir sua falta todos os segundos
Até que chegue uma nova manhã.

Toda vez que você vai embora
O tempo não passa,
E se até ele que é todo sente essa saudade
                    [fatal,
Que faço, se sou só eu,
Jaz-viva mortal?

Toda vez que você vai embora,
Bis Morgen, mein Herz.
Você me faz ter esperança no amanhã.

terça-feira, 5 de abril de 2016

O altar de carne

   Lúcia sentou-se em frente ao seu melhor amigo. Havia caminhado na brisa fria e deliciosa da manhã para vê-lo, vez ou outra desviando da garota fina e gelada. Carregara até seu local preferido da cidade uma barra de seu chocolate favorito como uma procissão carregaria a hóstia.
   Agradecia a presença do amigo, ele fora testemunha de sua vida. O crescimento, o amadurecimento, as camélias que caíam. Suas dores todas foram choradas frente às pernas cruzadas e pacientes, intocáveis para ela, mas acolhedoras. Ele fora testemunha de todos os amores que valeram a pena, e fora o colo a quem Lúcia recorreu toda vez que seu vestígio de esperança morria.
   (Da última vez, estava frio. Lúcia tremia. O amor era triste, o dia cinza, azul. Se prontificara a pedir ao grande amigo curandeiro algum tipo de amparo que a fizesse sentir melhor.
   Estava frio. Lúcia queria um abraço quente e confortável; a abstinência pariu um poema.)
   Sentou-se na mesma pedra em que sentara no último dia em que pediu consolo; a barra de chocolate jazia em seu colo. Como uma oferenda, abriu a embalagem acima da cabeça.
   Tinha a plena consciência de que a própria existência era reflexo manifesto da una vontade universal. E assim como todos os lugares e todas as coisas e todas as pessoas são feitas de matéria que flui hora ou outra de uma existência a outra, fez, como faria a algo que significava o próprio significado, a oferenda à vontade obscura e subconsciente de seu eu.
   (Houve uma noite triste em que estivera naquele lugar só e apenas a existência do amigo bastou para que soubesse que só tinha a melhor companhia.)
   A primeira mordida que deu no chocolate preencheu toda a cavidade da boca, passeando e estimulando as papilas gustativas com a intensidade suficiente para que Lúcia fechasse os olhos e deixasse que apenas o chocolate existisse, e depois, que corpo e chocolate e o local e a mente e o melhor amigo (que era parte da mente) se tornassem um.
   Enquanto comer fosse a vontade e chocolate fosse o que a satisfaria, Lúcia deixou que o corpo inteiro fosse a vontade, e comeu amando o leite e o cacau e a fábrica e todos as outras variantes desconhecidas que tornavam possível aquele comer erótico do qual o chocolate foi feito vítima.
   E naquele momento, o chocolate se fez o melhor amigo, e guardião de suas mágoas e seus amores e sua magia, e o chocolate foi testemunha de toda a informação mnemônica que caracterizava Lúcia como uma existência aparta do todo.
   Lúcia deixou que a carne fosse o altar, e o chocolate a oferenda, e a oferenda, carne, e a carne, deus.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Nota sobre a nota

Todos os dias eu acordo cansada
Do sol batendo na minha cara,
De viver inacordada.

No início, era o sangue
Mesclado com o da minha mãe,
Mestiço,
Era a dor paulatina,
O sangue do espermatozoide
Fadado à ruína.
No início era bom
Devanear a constância
Das alegrias,
Da infância.

Todos os dias eu acordo cansada
E esperança eu tenho
Em nada.

O sangue, meu sangue,
Era travesso,
Em ralados e cortes
E cascas de ferida
Vertia,
Fluía,
Em plena alforria,
A vida.
No início, era o sangue,
Louco, desenfreado,
Transportando a decadência
Em um coração desorientado.
Feito platéia da desgraça,
Batia menos,
Cada vez mais lento,
Cada vez mais fraco.

Todos os dias eu acordo cansada,
Eu não me lembro do som
Da minha risada.
Tenho feridas abertas
Que cauterizam devagar
Na água salgada do mar,
Meu sangue toca o subconsciente
                    [coletivo,
A alma de todas as dores além da minha,
E cada alma oceânica.

Todos os dias eu acordo cansada
Da luz da TV bater na minha retina.
Na TV parece lindo ser feliz,
Até acho que é moda,
Mas ainda sou aquariana.
O que quero dos sonhos que me
                    [vendem,
Da vida que me atiram
Pra ter que ouvir
"Mas você gostaria se tivessem te
                    [abortado?"
Meus objetivos todos
São qualquer coisa de um futuro
                    [tanto faz.

Quando eu crescer, não quero ser
                    [ninguém.
Nem sei se quero crescer
Nem se quero ser
Humano são
Na existência hormonal
Da compulsão
De qualquer sangue.

Todos os dias acordo cansada
De procurar um sentimento
Ou sensação diferente.
Quanto mais fácil, pior a qualidade,
Quanto mais difícil, menos eu me esforço,
Quanto mais veia, menos sangue,
O MEU sangue nunca foi meu.
Talvez eu queira uma conexão forte
Com nada.

No início, era o sangue,
Meus dias são uma constante contagem regressiva,
E o sangue, meu sangue,
Que já me manteve viva
Marcava minha pele corrompida,
No último papel de carta
Que foi minha despedida.
No fim, era o sangue,
Meu sangue,
Misturado ao de ninguém,
E acordei cansada.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Metaformose inartificial

A mãe não morreu,
Os olhos se abrem delineados
Como todos os olhos;
Não é fraca,
Ossos quarentas de ex atleta
Aguardando a osteoporose;
Não é rejeitada,
O ventre,
Pela barriga lipada
E a virilha raspada
Não se cansa de parir;
Suas crianças mimadas
Fazem volume
Ao mundo
E não dizem nada,
Criam movimento
Entre uma rua e outra,
São novas mães
Delineadas,
Atléticas,
Comidas,
Lipadas,
Raspadas,
Cruéis
Ao esnobarem o que conseguem
Com seus documentos padrão,
Mimadas.

Tudo foi sempre assim
E funcionou,
Felizes
Como os filmes artificiais,
E comerciais de margarina
                    [artificiais,
E seus corpos artificiais,
E a invenção de tecnologia
                    [controladora da
                    felicidade
Como tamanhos de roupas
E tamanhos de pênis
E espelhos
E tons de cabelo normais
E sabonetes para espinhas
E delineadores
E academias
E lipoaspirações
E o sexo qualquer jeito e agradaça,
(Você é desejável)
E depilações
E a reprodução
E a comparação
Entre bilhões e bilhões de pessoas
Tentando ser iguais.

As borboletas mecânicas
Têm cor,
Têm forma,
Têm mercado,
Têm embalagem,
Têm concorrência,
Têm função
De produzir mais,
Satisfazer os financiadores,
De parir
Mais e mais
Borboletas mecânicas
Instruídas
A rejeitar o que não servir
Ao controle de qualidade.

Nos murais da vergonha,
Do dejeto,
Do obscuro,
Da violência
Vivem, órfãs,
Todas com as mães vivas
(E delineadas,
E depiladas),
Escondidas da vergonha,
Chorando nos banheiros,
Nas valetas,
Nos bancos desocupados
Em meio ao volume
De borboletas mecânicas,
Sós em meio ao volume,
Em seus casulos, recolhidas,
As filhas tortas
De olhos que não são delineados,
Porque borram;
De corpos não padronizados,
Porque são suficientes;
Não rejeitadas,
Mas inocentes;
De barrigas não lipadas,
Em formas lindas
E virilhas não raspadas
Porque têm alergia.

As borboletas não automatizadas
Circulam
Sem rota que não a liberdade
Onde não são incômodo
Às rotas de massas de asas
                    [mecânicas,
Ocupam os lugares vazios de fora
Aumentam os lugares vazios de
                    [dentro
Vez ou outra com suas asas de seda
Mutiladas
Multi escaras,
Ou casulos violados
Ao bater sem querer
Com as asas em roupas que não
                    [servem,
Com o corpo vendido a
                    [consumidores de
                     borboletas mecânicas,
E em cabelos perfeitos,
E em rostos lisos,
E em olhares delineados,
E em corpos malhados,
E barrigas lipadas,
E predadores sedentos,
E virilhas lisas,
E o medo
De serem as últimas da espécie
Entre a solidão do abandono
Das mães vivas e mecânicas
E a necesssidade de compreender
E absorver
Toda a informação,
Aceitar a rejeição
Do controle de qualidade,
E a precocidade
Da pressão
De deixar o casulo
E viver fugindo
E escondendo o rosto dos
                    [predadores
Para não sentir dor além da do fardo
De viver insolicitamente
À margem do volume.

As borboletas não automatizadas
Não têm cor,
São negras, amarelas, vermelhas e
                    [azuis;
Não têm forma,
Algumas têm asas largas,
Outras, finas,
Outras, pontudas;
Não têm mercado
Senão a liberdade;
Não têm embalagem,
Pois voam nuas;
Não têm concorrência,
E sim amizade;
Não tem propósito
Nem garantia
E por isso insistem em querer
                    [expirar cedo.

As borboletas não automatizadas
São formosas
E se conectam umas
Com a dor das outras,
As borboletas mecânicas
São uma mentira
Contada a toda lagarta.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Persephone

I'm sorry
For loving you,
My heart is a never landing boat
I'm a neverlanding dreamer,
Your heart was an ever warming
                    [coat
And I love being cold.

I'm sorry
For knowing the taste
Of fear
Of this game, unfair,
For knowing the taste of despair,
For being a freak.
You'll never know
The risk it all takes.

I'm broken,
I hope someday you'll understand
I can't let my love flow,
I can't be the one to break you,
Can never be the one to show,
How deep,
How dirty,
How scary,
How dead I've been.

There's no life after love,
You shouldn't let me kill you
Just because I'm dead.
No Persephone I will ever have.
I can never land on beautiful places
For they're only beautiful alone.

I'm sorry,
I should never have kissed him,
But I have a never landing heart,
An ever hiding, running, ruining
                    [boat,
Freak me,
I should never have lead it
To a hurt or getting hurt war.
I'm sorry, it hurts me too
The thought
Of hurting you.

Leave me
Before you know
My monsters,
My demons,
Just leave me
So I can never let you down.

domingo, 10 de janeiro de 2016

"Mas sim, senhor!"

Sou espectadora
Da chuva de verão,
Toda a chuva a descer:
Eu também quero chover
Quando além da chuva tudo
                    [escorre.
Flui a energia de dentro,
Sempre pra fora, até a vida,
Tudo morre.

Um a um,
Entre as flores:
Meus pilares,
Meus amores.

O velho tinha medo de morrer
E deixar a gente no desespero
E só,
Mais nada,
Conversar pra quê?

(Há um lugar que eu odeio,
Aonde tudo o que foi
Nunca mais voltou,
Porque ele veio do submundo
Sem a alma,
Sem a luz,
Há um lugar que eu odeio,
Aonde tudo o que vai
Nunca mais voltará)

O velho era ríspido
Ao amanhecer,
Ah, era, "sim senhor",
Mas o calor
Até a aurora
Derretia a manteiga de cima da
                    [mesa
E ele se preocupava com a saúde do
                    [cachorro.
O velho era sério e foi doce.

O velho era velho e foi velho,
Mais velho é o meu coração
Onde não passa nada
Depois da morte,
Não, senhor.

sábado, 2 de janeiro de 2016

O pombal ferroviário

   As canelas finíssimas bambeavam ao desviar das pedras soltas de cimento para que a lama, fruto da tempestade da última noite, não respingasse por toda a perna, a saia ligeiramente curta ou os sapatos. O bebê agarrado ao colo berrava faminto. Ignácia trocou o braço em que apoiava a criança junto ao corpo para que gritasse alto no outro ouvido.
   O misto do choro e do barulho do vazio lembrava-a que há semanas o solado dos tamancos deixara de fazer "plec-plec" para fora, ressoando nas ruas, e começara a compassear a carne ardente para dentro do couro. O reflexo da luz pouca nas pedras lisas da ruela, as coloridas, decadentes e sujas construções rodoviárias do milênio passado e os postes escorrendo ferrugem ouviam, com os ouvidos que não tinham, o barulho que fazia o silêncio. Ignácia e os pontos de luz rápida verdes que antecipavam o verão tinham a pouca cabeça atormentada pelos berros, a de Ignácia mais do que pelos berros.
   Uma poça d'água teve a imagem que refletia da mística lua cheia e amarela velada por poucas nuvens borrada e trêmula quando Ignácia pisou sobre a água sem querer. Mas tudo fora de sua cabeça era tão tranquilo que não demorou para que a superfície da água voltasse a aparentar um liso tão perfeito quanto vidro sólido.
   Ignácia tinha os membros finos e desnutridos como os de quem poderia estar andando há dias procurando um lugar conhecido. E construía-se logo perante seus olhos castanhos camuflados entre a noite e a pele o beco confortável como a distância da cansativa vida anterior. A madrugada, o sereno e a lua abençoavam a vitória de deparar-se com uma casinha que, se não fosse pela pintura alaranjada, suja e descascando, alguns vasos de plantas murchas e um pouco de musgo escorrendo pelas paredes, seria exatamente igual a todas as outras. Tirou da mochila azul pastel que trazia nas costas uma mamadeira amarela com um quarto da capacidade preenchida por leite e silenciou todo o desespero que martelava de sua cabeça sem mesmo tocar os ouvidos.
   Enquanto o filho mergulhava no sono, mergulhou os olhos nas peças de formatos irregulares de cerâmica carmim desgastada que cobriam o chão de cimento -  peças que já haviam mudado de tamanho e cor, já haviam dançado e voltado a dormir nunca deixando de ser os exatos mesmos cacos de cerâmica. Nenhuma delas nunca foi confortável, todas gelavam a bunda e a muretinha com cimento texturizado que marcava o caminho da entrada do casebre e isolava a escadinha de três degraus doía nos primeiros segundos em que se reclinava a cabeça para apoiá-la nela. Fechou os olhos e misturou o próprio corpo ao silêncio para retornar a ser parte da paisagem.
   O apito e a barulheira da maquinaria do trem não rompia o silêncio que não existira no beco. Todas as portas das casas estavam abertas e tinham os caixilhos de madeira ruim e podre despedaçados em algumas partes, nenhum vidro das janelas permanecera intacto. Por dentro das janelas, pares curiosos de olhos faziam-se plateia da algazarra na ruela: homens mijavam nas paredes pixadas, pessoas gritavam ao finalmente perceber os cacos de garrafas que deslisavam por dentro da pele de seus pés descalços, pombos bicavam restos de sujeira entre os paralelepípedos da rua, pessoas jogavam os corpos nas entradas das casas, assim como fez Ignácia e gemiam baixo o pequeno segundo de conforto que unia todos os zumbis às construções abandonadas e ao único par de olhos consciente, que observou a volta de Ignácia e prestava toda a atenção no modo como dormia.
   Aquele par de olhos se escondia na janela mais distante dos trilhos do trem, na única janela de onde nunca se pôde ver mais do que um par de olhos. E pertencia a uma mulher grisalha que escondia o corpo e os sentimentos sob uma capa de cetim preto que as traças comiam aos poucos. Ela tinha os olhos mais altos de todo o beco e graças à capa que reluzia sob a mística lua cheia nunca precisou pedir a ninguém que mantivesse o olhar baixo. Ela estava profundamente interessada na reação da sua vadia de teste, imaginando desde quando Ignácia estava assim, já que demorou a voltar ao beco. Estúpido escolher justo ela, que sempre começava só quando já tivesse conseguido o dinheiro pro próximo mês.
   Ignácia abriu os olhos menos de duas horas depois de fechá-los. Estava certa de ter ouvido o maldito choro do bebê alto, mas ele não estava ali onde ela o havia deitado. "ONDE ESTÁ O MEU FILHO??? EU SEI QUE TEM ALGUÉM AÍ, ONDE VOCÊ ESTÁ? EU QUERO O MEU FILHO!", gritou, com toda a força que a desnutrição permitia e todo o volume que não doía na garganta arranhada de fumaça tóxica. Um homem saiu de uma casa e correu até o meio da ruela vazia, olhou para Ignácia e continuou a andar em direção ao trilho do trem.
   Uma mulher que estava caída ao lado de onde Inácia esteve riu e soltou um embaralhado de palavras incógnitas enquanto as pessoas abriam espaço, assustadas com o modo que Ignácia corria pela ruela como se estivesse vazia e não houvesse ninguém ao redor.
   O homem parou a um metro do trilho e abriu a boca para falar algo enquanto esticava um estilete queimado e enferrujado na direção de Ignácia, que parou de correr para não ser ferida e tentar negociar. As palavras de negociação não foram ouvidas porque assim como não enxergava as pessoas, Ignácia não ouvia suas vozes gritando em pânico, nem enxergava nem ouvia o trem se aproximando sem tempo de frear.
   Como os pombos deformados ainda brigavam para bicar algum resto de comida ignorando a sujeira do chão, quando o trem foi embora, um bando de zumbis semiconscientes ignorava o sangue que molhava o dinheiro do próximo mês.
   Com o novo dinheiro sujo de vermelho em uma mão e uma colher torta, um cara foi até a mulher que assistira a tudo sob uma capa de cetim puxando a conversa. "Cê sabe que ela tava gritando que alguém pego o filho dela, né, quem foi?". A mulher pegou o dinheiro e em troca deu um pacote da coisa nova que tinha acabado de testar. "Aquela vadia nunca teve um filho".

https://www.youtube.com/watch?v=ZsLvrBwPrA0